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  • MITOLOGIA CLASSICA: MARTE
    quinta-feira, novembro 23, 2006



    Cacah Travassos - Astróloga e escritora

    Marte representa, em sua psique, a energia que você coloca em tudo e a força que usa para abrir os seus próprios caminhos. No Mapa, ele indicará o setor da sua vida onde mais se concentrará essa força, onde deverá lutar e enfrentar os desafios com coragem, pois apesar dos "ferimentos" que geralmente acontecem, as conquistas também certamente virão.

    Quando você usa da melhor maneira essa sua capacidade de lutar pelas coisas que quer, desperta a sua verdadeira força, a energia mais qualificada, a vontade mais consciente e melhor dirigida para a conquista de suas mais importantes batalhas.

    Quando abre mão disso, pode despertar o pior que há em você, respondendo às situações da vida com violência, agressividade, rudeza e, às vezes, ficando sem a energia necessária para realizar até as pequenas coisas.


    É importante sempre lembrar que Marte, regente do signo de Áries, na Mitologia, é o deus da guerra e que mesmo não saindo vencedor em todas as situações, não devemos perder de vista o Herói e o Guerreiro que existe dentro de cada um de nós.


    Cacah Travassos é astróloga profissional e membro da diretoria do Sindicato do Astrólogos do Estado de Pernambuco (SINASPE).
    posted by iSygrun Woelundr @ 7:53 PM   0 comments
    MAGIA: O Simbolismo de Áries

    C
    Ângela Brainer Astróloga

    Áries, simbolicamente, está associado ao impulso criador que contentemente atualiza nossa consciência e nos permite, com isso, vislumbrar o novo caminho a ser seguido em nossas vidas. É a vontade do ser manifestado - estrutura arquétipo primordial. É a representação do extremo impulso em direção à condição de semente, em direção ao extremo de realização - a sede de vida num corpo É o nascimento com o seu primeiro contato com o mundo. Contato quase sempre violento pela própria natureza do nascer.

    Áries é o símbolo do fogo que cria, que impulsiona com atrevimento e força física. Impulso da força que leva sempre a abrir novos caminhos, sempre querendo ser o primeiro, tendo atitudes e comportamentos ousados e arrojados. É o símbolo do princípio, do início, do despertar. Áries é a expressão da força que rompe barreiras, de tudo que a natureza cria, inaugura, anuncia, desperta e faz viver.

    O símbolo de Áries está associado ao Mito do Carneiro de pêlo de ouro - Crissômalo , onde a vontade, o impulso para agir, o espírito empreendedor, o desejo de liderar por ser o melhor, estão presentes. Símbolo do que abre uma via, do caminho que leva à recuperação de algo anteriormente perdido. O símbolo de Áries está associado, também, ao Mito do herói, tendo em Jasão e nos Argonautas sua melhor expressão. É a representação do guerreiro, do que parte para o cumprimento de uma missão, do guerreiro que nada teme, que só se interessa em lutar com audácia e ser vitorioso. É a representação do herói, que luta bravamente, não admitindo derrotas, só tendo em mente a vitória. É a exaltação da coragem.

    Áries é a compreensão do desejo, que é a vontade dirigida para a ação, para a iniciativa. É a liberação da energia dirigida para um determinado ponto no rumo de novas experiências. É a expressão da força que aguarda um movimento, que tem possibilidade de elevar-se. Áries é a consciência de agilidade para se lançar em busca do resgate do paraíso onde fomos expulsos. E, para a vitória, é necessário dar o melhor de si, correndo, voando, e nadando melhor do que qualquer outro.



    Ângela Brainer é astróloga profissional, de formação tradicional e humanista, e sócia fundadora do Sindicato dos Astrólogos de Pernambuco (SINASPE).



    Mitologia de
    Áries

    Casa natural:casa I Elemento:fogo Regente:Marte

    O mito dos Argonautas

    A agilidade, a aventura e a coragem estão contidos no conceito do primeiro signo do Zodíaco, Áries, bem representado pela história dos argonautas e sua expedição ao jardim de Marte, em busca do tosão de ouro. O mito Nas terras de Iolco, o rei Éson foi destronado pelo próprio irmão, Pélias. Com a intenção de efetivar sua soberania, o novo rei manda matar o sobrinho Jasão, único que poderia clamar o trono quando fosse adulto. Convencido de que a fraca criança não sobreviveria por muito tempo, Pélias manda o garoto para o exílio, sob os cuidados do sábio centauro Quirão.Jasão sobrevive e é educado pelo centauro até completar vinte anos, quando parte para Iolco reclamar o trono que havia sido usurpado do pai. Trajando uma pele de pantera, o herdeiro se apresenta calçando apenas uma sandália, tendo perdido a outra quando atravessara um riacho. Pélias compreende de imediato o perigo, pois havia sido prevenido por um oráculo da ameaça de um estranho com um pé descalço. Assim, fingindo concordar com as exigências de Jasão, Pélias impõe uma tarefa, que julga ser a mais difícil de ser cumprida: conquistar o Velocino de Ouro em poder do rei Eetes e trazê-lo a Iolco.O Velocino de Ouro era um tesouro inigualável. A preciosidade fora retirada de um carneiro dourado, que corria, nadava e voava melhor do que ninguém, oferecido por Mercúrio a Néfele, para que salvasse seu casal de filhos da ira da nova mulher do seu marido. Néfele coloca seus filhos Frixo e Hele no dorso do animal, que voa e desaparece com as crianças. Hele tem uma vertigem e tomba no mar, mas seu irmão sobrevive e ao chegar a salvo em Cólquida, sacrifica o animal a Júpiter e oferece sua pele ao soberano Eetes que o abriga. O tesouro foi então guardado no jardim de Marte e vigiado por um dragão que nunca fechava os olhos. Mesmo sabendo da dificuldade de obter tamanha preciosidade, Jasão aceita o desafio e reúne um grupo de 50 homens, os mais corajosos que pôde encontrar, entre eles vários heróis e semideuses como Hércules, o músico Orfeu, os irmãos Castor e Pólux e o bravo Teseu. Para transportar o grupo, Jasão encomenda a maior e melhor embarcação que já havia sido construída na Grécia a um artesão de renome: Argos, cujo nome foi dado a nau. Estava assim constituído o grupo dos Argonautas, que parte em direção a Cólquida para conquistar o Velocino de Ouro e restituir o trono a Jasão.Depois de diversas dificuldades no percurso, os Argonautas chegam à Cólquida e Jasão reclama a posse do Velocino de Ouro a Eetes, que concordou em ceder o objeto se o herói cumprisse duas provas de coragem: arar a terra com dois touros de narinas fumegantes e patas de bronze e semear os dentes do dragão do Cadmo, dos quais nasceriam uma leva de gigantes, que o herói deveria vencer, tudo isso num só dia.A missão teria sido impossível de ser cumprida por qualquer mortal se não houvesse a interferência de Medéia, filha de Eetes, que se apaixonara perdidamente por Jasão. Convencida pelas promessas de eterno amor do jovem grego, Medéia resolve trair o pai e a pátria para ajudar o argonauta a vencer seu desafio. Ela usa seus poderes mágicos e torna o corpo do amado imune ao fogo e ao ferro, protegendo-o contra as chamas e as patas dos touros. Ainda agindo de acordo com as indicações de Medéia, Jasão observa os gigantes nascerem da terra e joga entre eles uma pedra, fazendo com que exterminassem uns aos outros.Eetes, surpreso com o sucesso de Jasão, não cumpre a promessa de ceder o Velocino de Ouro e pretende matar os argonautas e destruir a Argo. Medéia novamente interfere, previne o amado e o ajuda a roubar o tesouro fazendo com que o dragão vigilante adormecesse sob o seu encanto e se tornasse presa fácil para a lança de Jasão.De posse do Tosão de Outro, os Argonautas e Medéia fogem na Argo e levam Absirto, outro filho de Eetes como refém. O rei, ao perceber que havia sido enganado, envia seus soldados ao encalço dos fugitivos para recuperar o Velocino e trazer de volta a filha traidora. Medéia, disposta a tudo pelo amado, usa uma artimanha cruel para retardar os perseguidores: mata o próprio irmão, esquarteja seu corpo e joga seus pedaços ao mar. Os guerreiros param então a perseguição para recuperar os restos mortais do filho do rei e sepultá-lo, deixando os Argonautas escaparem rumo a Iolco. Em honra ao feito de Jasão, o carneiro da lã de ouro foi transformado na constelação de Áries.
    O signo de ÁriesPara saber mais:
    A inteligência ariana Saiba quais as coisas que você possui maior clareza para enxergar e compreender por Márcia Mattos.
    O simbolismo de Áries Conheça os conceitos nos quais a sua consciência se abastece.
    O regente de Áries O regente de Áries: como você lida com a sua energia e capacidade de batalha?.
    Os três níveis da vidaAprofunde-se no significado do mapa astrológico, conhecendo os três níveis da vida nele retratados.


    posted by iSygrun Woelundr @ 7:41 PM   0 comments
    BIBLIOTECA ON LINE: assim falava zaratustra
    assim falava zaratustra

    Autor: Friedrich Nietzsche - Tradutor: José Mendes de Souza


    Preâmbulo de Zaratustra

    I

    Aos trinta anos apartou-se Zaratustra da sua pátria e do lago da sua pátria, e foi-se até a montanha. Durante dez anos gozou por lá do seu espírito e da sua soledade sem se cansar. Variaram, porém, os seus sentimentos, e uma manhã, erguendo-se com a aurora, pôs-se em frente do sol e falou-lhe deste modo:
    “Grande astro! Que seria da tua felicidade se te faltassem aqueles a quem iluminas? Faz dez anos que te abeiras da minha caverna, e, sem mim, sem a minha águia e a minha serpente, haver-te-ias cansado da tua luz e deste caminho.
    Nós, porém, esperávamo-te todas as manhãs, tomávamo-te o supérfluo e bemdizíamos-te. Pois bem: já estou tão enfastiado da minha sabedoria, como a abelha que acumulasse demasiado mel. Necessito mãos que se estendam para mim.
    Quisera dar e repartir até que os sábios tornassem a gozar da sua loucura e os pobres da sua riqueza.
    Por isso devo descer às profundidades, como tu pela noite, astro exuberante de riqueza quando transpões o mar para levar a tua luz ao mundo inferior.
    Eu devo descer, como tu, segundo dizem os homens a quem me quero dirigir. Abençoa-me, pois, olho afável, que podes ver sem inveja até uma felicidade demasiado grande!
    Abençoa a taça que quer transbordar, para que dela manem as douradas águas, levando a todos os lábios o reflexo da tua alegria!
    Olha! Esta taça quer de novo esvaziar-se, e Zaratustra quer tornar a ser homem”. Assim principiou o caso de Zaratustra.

    II

    Zaratustra desceu sozinho das montanhas sem encontrar ninguém. Ao chegar aos bosques deparou-se-lhe de repente um velho de cabelos brancos que saíra da sua santa cabana para procurar raízes na selva. E o velho falou a Zaratustra desta maneira:
    “Este viandante não me é desconhecido: passou por aqui há anos. Chamava-se Zaratustra, mas mudou.
    Nesse tempo levava as suas cinzas para a montanha. Quererá levar hoje o seu fogo para os vales? Não terá medo do castigo que se reserva aos incendiários?
    Sim; reconheço Zaratustra. O seu olhar, porém, e a sua boca não revelam nenhum enfado. Parece que se dirige para aqui como um bailarino!
    Zaratustra mudou, Zaratustra tornou-se menino, Zaratustra está acordado. Que vais fazer agora entre os que dormem?
    Como no mar vivias, no isolamento, e o mar te levava. Desgraçado! Queres saltar em terra? Desgraçado! Queres tornar a arrastar tu mesmo o teu corpo?”
    Zaratustra respondeu: “Amo os homens”.
    “Pois por que – disse o santo – vim eu para a solidão? Não foi por amar demasiadamente os homens?
    Agora, amo a Deus; não amo os homens.
    O homem é, para mim, coisa sobremaneira incompleta. O amor pelo homem matar-me-ia”. Zaratustra respondeu: “Falei de amor! Trago uma dádiva aos homens”.
    “Nada lhes dês – disse o santo. – Pelo contrário, tira-lhes qualquer coisa e eles logo te ajudarão a levá-la. Nada lhes convirá melhor, de que quanto a ti te convenha.
    E se queres dar não lhes dês mais do que uma esmola, e ainda assim espera que tá peçam”.
    “Não – respondeu Zaratustra; – eu não dou esmolas. Não sou bastante pobre para isso”.
    O santo pôs-se a rir de Zaratustra e falou assim: “Então vê lá como te arranjas para te aceitarem os tesouros. Eles desconfiam dos solitários e não acreditam que tenhamos força para dar.
    As nossas passadas soam solitariamente demais nas ruas. E, ao ouvi-las perguntam assim como de noite, quando, deitados nas suas camas, ouvem passar um homem muito antes do alvorecer: Aonde irá o ladrão?
    Não vás para os homens! Fica no bosque!
    Prefere à deles a companhia dos animais! Por que não queres ser como eu, urso entre os ursos, ave entre as aves?”.
    “E que faz o santo no bosque?” – perguntou Zaratustra.
    O santo respondeu: “Faço cânticos e canto-os, e quando faço cânticos rio, choro e murmuro.
    Assim louvo a Deus.
    Com cânticos, lágrimas, risos e murmúrios louvo ao Deus que é meu Deus. Mas, deixa ver: que presente nos trazes?”.
    Ao ouvir estas palavras, Zaratustra cumprimentou o santo e disse-lhe: “Que teria eu para vos dar? O que tens a fazer é deixar-me caminhar, correndo, para vos não tirar coisa nenhuma”.
    E assim se separaram um do outro, o velho e o homem, rindo como riem duas criaturas.
    Quando, porém, Zaratustra se viu só, falou assim, ao seu coração: “Será possível que este santo ancião ainda não ouvisse no seu bosque que Deus já morreu?”

    III

    Chegando à cidade mais próxima, enterrada nos bosques, Zaratustra encontrou uma grande multidão na praça pública, porque estava anunciado o espetáculo de um bailarino de corda.
    E Zaratustra falou assim ao povo:
    “Eu vos anuncio o Super-homem”.
    “O homem é superável. Que fizestes para o superar?
    Até agora todos os seres têm apresentado alguma coisa superior a si mesmos; e vós, quereis o refluxo desse grande fluxo, preferes tornar ao animal, em vez de superar o homem?
    Que é o macaco para o homem? Uma irrisão ou uma dolorosa vergonha. Pois é o mesmo que deve ser o homem para Super-homem: uma irrisão ou uma dolorosa vergonha.
    Percorrestes o caminho que medeia do verme ao homem, e ainda em vós resta muito do verme. Noutro tempo fostes macaco, e hoje o homem é ainda mais macaco do que todos os macacos.
    Mesmo o mais sábio de todos vós não passa de uma mistura híbrida de planta e de fantasma. Acaso vos disse eu que vos torneis planta ou fantasma?
    Eu anuncio-vos o Super-homem!
    O Super-homem é o sentido da terra. Diga a vossa vontade: seja o Super-homem, o sentido da terra.
    Exorto-vos, meus irmãos, a permanecer fiéis à terra e a não acreditar naqueles que vos falam de esperanças supra-terrestres.
    São envenenadores, quer o saibam ou não.
    São menosprezadores da vida, moribundos que estão, por sua vez, envenenados, seres de quem a terra se encontra fatigada; vão-se por uma vez!
    Noutros tempos, blasfemar contra Deus era a maior das blasfêmias; mas Deus morreu, e com ele morreram tais blasfêmias. Agora, o mais espantoso é blasfemar da terra, e ter em maior conta as entranhas do impenetrável do que o sentido da terra.
    Noutros tempos a alma olhava o corpo com desdém, e então nada havia superior a esse desdém: queria a alma um corpo fraco, horrível, consumido de fome! Julgava deste modo libertar-se dele e da terra.
    Ó! Essa mesma alma era uma alma fraca, horrível e consumida, e para ela era um deleite a crueldade!
    Irmãos meus, dizei-me: que diz o vosso corpo da vossa alma? Não é a vossa alma, pobreza, imundície e conformidade lastimosa?
    O homem é um rio turvo. É preciso ser um mar para, sem se toldar, receber um rio turvo.
    Pois bem; eu vos anuncio o Super-homem; é ele esse mar; nele se pode abismar o vosso grande menosprezo.
    Qual é a maior coisa que vos pode acontecer? Que chegue a hora do grande menosprezo, a hora em que vos enfastie a vossa própria felicidade, de igual forma que a vossa razão e a vossa virtude.
    A hora em que digais: “Que importa a minha felicidade! É pobreza, imundície e conformidade lastimosa.
    A minha felicidade, porém, deveria justificar a própria existência!”
    A hora em que digais: “Que importa minha razão! Anda atrás do saber como o leão atrás do alimento. A minha razão é pobreza, imundície e conformidade lastimosa!”
    A hora em que digais: “Que importa a minha virtude? Ainda me não enervou. Como estou farto do meu bem e do meu mal. Tudo isso é pobreza, imundície e conformidade lastimosa!”
    A hora em que digais: “Que importa a minha justiça?! Não vejo que eu seja fogo e carvão! O justo, porém, é fogo e carvão!”
    A hora em que digais: “Que importa a minha piedade? Não é a piedade a cruz onde se crava aquele que ama os homens? Pois a minha piedade é uma crucificação”.
    Já falaste assim? Já gritaste assim? Ah! Não vos ter eu ouvido a falar assim!
    Não são os vossos pecados, é a vossa parcimônia que clama ao céu! A vossa mesquinhez até no pecado, isso é que clama ao céu!
    Onde está, pois, o raio que vos lamba com a sua língua? Onde está o delírio que é mister inocular-vos?
    Vede; eu anuncio-vos o Super-homem: “É ele esse raio! É ele esse delírio!”
    Assim que Zaratustra disse isto, um da multidão exclamou: “Já ouvimos falar demasiado do que dança na corda; mostrá-no-lo agora”. E toda a gente se riu de Zaratustra. Mas o dançarino da corda, julgando que tais palavras eram com ele, pôs-se a trabalhar.


    IV

    Entretanto, Zaratustra olhava a multidão, e assombrava-se. Depois falava assim: “O homem é corda estendida entre o animal e o Super-homem: uma corda sobre um abismo; perigosa travessia, perigoso caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.
    O grande do homem é ele ser uma ponte, e não uma meta; o que se pode amar no homem é ele ser uma passagem e um acabamento.
    Eu só amo aqueles que sabem viver como que se extinguindo, porque são esses os que atravessam de um para outro lado.
    Amo os grandes desdenhosos, porque são os grandes adoradores, as setas do desejo ansiosas pela outra margem.
    Amo os que não procuram por detrás das estrelas uma razão para morrer e oferecer-se em sacrifício, mas se sacrificam pela terra, para que a terra pertença um dia ao Super-homem.
    Amo o que vive para conhecer, e que quer conhecer, para que um dia viva o Super-homem, porque assim quer o seu acabamento.
    Amo o que trabalha e inventa, a fim de exigir uma morada ao Super-homem e preparar para ele a terra, os animais e as plantas, porque assim quer o seu acabamento.
    Amo o que ama a sua virtude, porque a virtude é vontade de extinção e uma seta do desejo.
    Amo o que não reserva para si uma gota do seu espírito, mas que quer ser inteiramente o espírito da sua virtude, porque assim atravessa a ponte como espírito.
    Amo o que faz da sua virtude a sua tendência e o seu destino, pois assim, por sua virtude, quererá viver ainda e deixar de viver.
    Amo o que não quer ter demasiadas virtudes. Uma virtude é mais virtude do que duas, porque é mais um nó a que se aferra o destino.
    Amo o que prodigaliza a sua alma, o que não quer receber agradecimentos nem restitui, porque dá sempre e se não quer preservar.
    Amo o que se envergonha de ver cair o dado a seu favor e que pergunta ao ver tal: “Serei um jogador fraudulento?” porque quer submergir-se.
    Amo o que solta palavras de ouro perante as suas obras e cumpre sempre com usura o que promete, porque quer perecer.
    Amo o que justifica os vindouros e redime os passados, porque quer que o combatam os presentes.
    Amo o que castiga o seu Deus, porque ama o seu Deus, pois a cólera do seu Deus o confundirá.
    Amo aquele cuja alma é profunda, mesmo na ferida, e ao que pode aniquilar um leve acidente, porque assim de bom grado passará a ponte.
    Amo aquele cuja alma transborda, a ponto de se esquecer de si mesmo e quanto esteja nele, porque assim todas as coisas se farão para sua ruína.
    Amo o que tem o espírito e o coração livres, porque assim a sua cabeça apenas serve de entranhas ao seu coração, mas o seu coração, o leva a sucumbir.
    Amo todos os que são como gotas pesadas que caem uma a uma da sombria nuvem suspensa sobre os homens, anunciam o relâmpago próximo e desaparecem como anunciadores.
    Vede: eu sou um anúncio do raio e uma pesada gota procedente da nuvem; mas este raio chama-se o Super-homem”.


    V

    Pronunciadas estas palavras, Zaratustra tornou a olhar o povo, e calou-se. “Riem-se – disse o seu coração. – Não me compreendem; a minha boca não é a boca que estes ouvidos necessitam.
    Terei que principiar por lhes destruir os ouvidos para que aprendam a ouvir com os olhos? Terei que atroar à maneira de timbales ou de pregadores de Quaresma? Ou só acreditarão nos gagos?
    De qualquer coisa se sentem orgulhosos. Como se chama então, isso de que estão orgulhosos? Chama-se civilização: é o que se distingue dos cabreiros.
    Isto, porém, não gostam eles de ouvir, porque os ofende a palavra “desdém”.
    Falar-lhes-ei, portanto, ao orgulho.
    Falar-lhes-ei do mais desprezível que existe, do último homem.
    E Zaratustra falava assim ao povo:
    “É tempo que o homem tenha um objetivo. É tempo que o homem cultive o germe da sua mais elevada esperança. O seu solo é ainda bastante rico, mas será pobre, e nele já não poderá medrar nenhuma árvore alta.
    Ai! aproxima-se o tempo em que o homem já não lançará por sobre o homem a seta do seu ardente desejo e em que as cordas do seu arco já não poderão vibrar.
    Eu vo-lo digo: é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante.
    Eu vo-lo digo: tendes ainda um caos dentro de vós outros.
    Ai! Aproxima-se o tempo em que o homem já não dará a luz às estrelas; aproxima-se o tempo do mais desprezível dos homens, do que já se não pode desprezar a si mesmo.
    Olhai! Eu vos mostro o último homem.
    Que vem a ser isso de amor, de criação, de ardente desejo, de estrela? – pergunta o último homem, revirando os olhos.
    A terra tornar-se-á então mais pequena, e sobre ela andará aos pulos o último homem, que tudo apouca. A sua raça é indestrutível como a da pulga; o último homem é o que vive mais tempo.
    “Descobrimos a felicidade” – dizem os últimos homens, e piscam os olhos.
    Abandonaram as comarcas onde a vida era rigorosa, porque uma pessoa necessita calor. Ainda se quer ao vizinho e se roçam pelo outro, porque uma pessoa necessita calor.
    Enfraquecer e desconfiar parece-lhes pecaminoso; anda-se com cautela. Insensato aquele que ainda tropeça com as pedras e com os homens!
    Algum veneno uma vez por outra, é coisa que proporciona agradáveis sonhos. E muitos venenos no fim para morrer agradavelmente.
    Trabalha-se ainda porque o trabalho é uma distração; mas faz-se de modo que a distração não debilite.
    Já uma pessoa se não torna nem pobre nem rica; são duas coisas demasiado difíceis. Quem quererá ainda governar? Quem quererá ainda obedecer? São duas coisas demasiado custosas.
    Nenhum pastor, e só um rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais: o que pensa de outro modo vai por seu pé para o manicômio.
    “Noutro tempo toda a gente era doida” – dizem os perspicazes, e reviram os olhos.
    É-se prudente, e está-se a par do que acontece: desta maneira pode-se zombar sem cessar. Questiona-se ainda, mas logo se fazem as pazes; o contrário altera a digestão.
    Não falta um pouco de prazer para o dia e um pouco de prazer para a noite; mas respeita-se a saúde.
    “Descobrimos a felicidade” – dizem os últimos homens – e reviram os olhos”.
    Aqui acabou o primeiro discurso de Zaratustra, – que também se chama preâmbulo – porque neste ponto foi interrompido pelos gritos e pelo alvoroço da multidão. “Dá-nos esse último homem, Zaratustra – exclamaram – torna-nos semelhantes a esses últimos homens! perdoar-te-emos o Super-homem”. E todo o povo era alegria. Zaratustra entristeceu e disse consigo:
    “Não me compreendem; não. Não é da minha boca que estes ouvidos necessitam. Vivi demais nas montanhas, escutei demais os arroios e as árvores, e agora falo-lhes como um pastor.
    A minha alma é sossegada e luminosa como o monte pela manhã; mas eles julgam que sou um frio e astuto chocareiro.
    Ei-los olhando-me e rindo-se, e enquanto se riem, continuam a odiar-me. Há gelo nos seus risos”.

    VI

    Sucedeu, porém, qualquer coisa que fez emudecer todas as bocas e atraiu todos os olhares.
    Entrementes pusera-se a trabalhar o volteador; saíra de uma pequena porta e andava pela maroma presa a duas torres sobre a praça pública e a multidão.
    Quando estava justamente na metade do caminho abriu-se outra vez a portinhola, donde saltou o segundo acrobata que parecia um palhaço com as suas mil cores, o qual seguiu rapidamente o primeiro. “Depressa, bailarino! – gritou a sua horrível voz. – “Depressa, mandrião, manhoso, cara deslavada! Olha que te piso os calcanhares!
    Que fazes aqui entre estas torres? Na torre devias tu estar metido; obstrues o caminho a outro mais ágil do que tu!” E a cada palavra se aproximava mais, mas, quando se encontrou a um passo, sucedeu essa coisa terrível que fez calar todas as bocas e atraiu todos os Olhares; lançou um grito diabólico e saltou por cima do que lhe interceptava o caminho.
    Este, ao ver o rival vitorioso, perdeu a cabeça e a maroma, largou o balancim e precipitou-se no abismo como um remoinho de braços e pernas. A praça pública e a multidão pareciam o mar quando se desencadeia a tormenta. Todos fugiram atropeladamente, em especial do sítio onde deveria cair o corpo. Zaratustra permaneceu imóvel, e junto dele caiu justamente o corpo, destroçado, mas vivo ainda. Passado um momento o ferido recuperou os sentidos e viu Zaratustra ajoelhado junto de si. “Que fazes aqui? – lhe disse. Já há tempo que eu sabia que o diabo me havia de derrubar. Agora arrasta-me para o inferno. Queres impedi-lo?”
    “Amigo – respondeu Zaratustra – palavra de honra que tudo isso de que falas não existe, não há diabo nem inferno. A tua alma ainda há de morrer mais depressa do que o teu corpo; nada temas”.
    O homem olhou receoso. “Se dizes a verdade – respondeu – nada perco ao perder a vida. Não passo de uma besta que foi ensinada a dançar a poder de pancadas e de fome”.
    “Não – disse Zaratustra – fizeste do perigo o teu ofício, coisa que não é para desprezar. Agora por causa do teu ofício sucumbes e atendendo a isso vou enterrar-te por minha própria mão”.
    O moribundo já não respondeu, mas moveu a mão como se procurasse a de Zaratustra para lhe agradecer.

    VII

    Abeirava-se a noite, e a praça sumia-se nas trevas. Então a multidão dispersou-se porque até a curiosidade e o pavor se cansam. Sentado ao pé do cadáver, Zaratustra encontrava-se tão abismado nas suas reflexões que se esqueceu do tempo. Fez-se noite e sobre o solitário soprou um vento frio. Zaratustra ergueu-se então, e disse consigo:
    “Na verdade, Zaratustra fez hoje uma boa pesca! Não alcançou um homem, mas um cadáver!
    Coisa para nos preocupar é a vida humana, e sempre vazia de sentido: um trovão lhe pode ser fatal!
    Quero ensinar aos homens o sentido da sua existência, que é o Super-homem, o relâmpago que brota da sombria nuvem homem.
    Estou, porém, longe deles, e o meu sentido nada diz aos seus sentidos. Para os homens sou uma coisa intermediária entre o doido e o cadáver.
    Escura é a noite, escuros são os caminhos de Zaratustra. Vem, companheiro frio e rígido! Levar-te-ei ao sítio onde por minha mão te enterrarei”.

    VIII

    Dito isto ao seu coração, Zaratustra deitou o cadáver às costas e pôs-se a caminho. Ainda não andara cem passos quando se lhe acercou furtivamente um homem e lhe falou baixinho ao ouvido. O que falava era o palhaço da torre. Eis o que lhe dizia: – “Sai desta cidade, Zaratustra, – há aqui demasiada gente que te odeia. Os bons e os justos odeiam-te e chamam-te seu inimigo e desprezador; os fiéis da verdadeira crença odeiam-te e dizem que és o perigo da multidão. Ainda tiveste sorte em zombarem de ti, e na verdade falavas como um truão. Tiveste sorte em te associar a esse vilão desse morto; rebaixando-te, por essa forma salvaste-te por hoje; mas sai desta cidade, ou amanhã salto eu por cima de ti, um vivo por cima de um morto”. E o homem desapareceu, e Zaratustra seguiu o seu caminho pelas escuras ruas. À porta da cidade encontrou os coveiros.
    Estes aproximaram-lhe da cara as enxadas, e conheceram Zaratustra e troçaram muito dele. “Zaratustra leva o indigno morto! Bravo! Zaratustra tornou-se coveiro! As nossas mãos são puras demais para tocar nessa peça! Com que então Zaratustra quer roubar o pitéu ao demônio! Apre! Bom proveito! Isto se o diabo não for melhor ladrão que Zaratustra e os não roubar aos dois!” E riam entre si, cochichando. Zaratustra não respondeu palavra e seguiu seu caminho. Passadas duas horas a andar à beira de bosques e de lagoas; já ouvira latir os lobos esfomeados, e também a ele o atormentava a fome. Por esse motivo parou diante de uma casa isolada onde brilhava uma luz.
    “Apodera-se de mim a fome como um salteador – disse Zaratustra: – no meio dos bosques e das lagoas e na escura noite me surpreende.
    A minha fome tem estranhos caprichos. Em geral só me aparece depois de comer, e hoje em todo o dia não me apareceu. Onde se entreteria então?”.
    Assim dizendo, Zaratustra bateu à porta da casa. Logo apareceu um velho com uma luz e perguntou: “Quem se abeira de mim e do meu fraco sono?”
    “Um vivo e um morto – respondeu Zaratustra. – Dá-me de comer e de beber; esqueci-me de o fazer durante o dia. Quem dá de comer ao faminto reconforta a sua própria alma: assim falava a sabedoria”.
    O velho retirou-se; mas tornou no mesmo instante e ofereceu a Zaratustra pão e vinho. “Ruim terra é esta para os que têm fome – disse ele – por isso eu habito nela. Homens e animais de mim se aproximam, de mim, o solitário. Mas chama também o teu companheiro para comer e beber; está mais cansado do que tu”. Zaratustra respondeu: “O meu companheiro está morto; não é fácil decidi-lo a comer”. “Nada tenho com isto – resmungou o velho. – O que bate à minha porta deve receber o que lhe ofereço. Come, e passa bem”.
    Zaratustra tornou a andar outras duas horas, confiando-se ao caminho e à luz das estrelas, porque estava acostumado às caminhadas noturnas e gostava de contemplar tudo quanto dorme. Quando principiou a raiar a aurora encontrava-se num espesso bosque e já não via nenhum caminho. Então colocou o cadáver no côncavo de uma árvore à altura da sua cabeça – pois queria livrá-lo dos lobos – e deitou-se no solo sobre a relva. No mesmo instante adormeceu cansado de corpo, mas com a alma tranqüila.

    IX

    Zaratustra dormiu muito tempo e por ele passou não só a aurora mas toda a manhã. Por fim abriu os olhos, e olhou admirado no meio do bosque e do silêncio; admirado olhou para dentro de si mesmo. Ergueu-se precipitado, como navegante que de súbito avista terra, e soltou um grito de alegria porque vira uma verdade nova. E falou deste modo ao seu coração:
    “Um raio de luz me atravessa a alma: preciso de companheiros, mas vivos, e não de companheiros mortos e cadáveres, que levo para onde quero.
    Preciso de companheiros, mas vivos, que me sigam – porque desejem seguir-se a si mesmos – para onde quer que eu vá.
    Um raio de luz me atravessa a alma: não é à multidão que Zaratustra deve falar, mas a companheiros! Zaratustra não deve ser pastor e cão de um rebanho!
    Para apartar muitos do rebanho, foi para isso que vim. O povo e o rebanho irritam-se comigo. Zaratustra quer ser acoimado de ladrão pelos pastores.
    Eu digo pastores, mas eles a si mesmos se chamam os fiéis da verdadeira crença! Vede os bons e os justos! a quem odeiam mais? A quem lhes despedaça as tábuas de valores, ao infrator, ao destruidor. É este, porém, o criador.
    O criador procura companheiros, não procura cadáveres, rebanhos, nem crentes; procura colaboradores que inscrevam valores novos ou tábuas novas.
    O criador procura companheiros para seguir com ele; porque tudo está maduro para a ceifa. Faltam-lhe, porém, as cem foices, e por isso arranca espigas, contrariado.
    Companheiros que saibam afiar as suas foices, eis o que procura o criador. Chamar-lhes-ão destruidores e desprezadores do bem e do mal, mas eles hão de ceifar e descansar.
    Colaboradores que ceifem e descansem com ele, eis o que busca Zaratustra. Que se importa ele com rebanhos, pastores e cadáveres?
    E tu, primeiro companheiro meu, descansa em paz! Enterrei-te bem, na tua árvore oca, deixo-te bem defendido dos lobos.
    Separo-me, porém, de ti; já passou o tempo. Entre duas auroras me iluminou uma nova verdade.
    Não devo ser pastor nem coveiro. Nunca mais tornarei a falar ao povo; pela última vez falei com um morto.
    Quero unir-me aos criadores, aos que colhem e se divertem; mostrar-lhes-ei o arco-íris e todas as escadas que levam ao Super-homem.
    Entoarei o meu cântico aos solitários e aos que se encontram juntos na solidão; e a quem quer que tenha ouvidos para as coisas inauditas confranger-lhe-ei o coração com a minha ventura.
    Caminho para o meu fim; sigo o meu caminho; saltarei por cima dos negligentes e dos retardados. Desta maneira será a minha marcha o seu fim!”

    X

    Assim falava Zaratustra ao seu coração quando o sol ia em meio do seu curso; depois dirigiu para as alturas um olhar interrogador porque ouvia por cima de si o grito penetrante de uma ave. E viu uma águia que pairava nos ares traçando largos rodeios e sustentando uma serpente que não parecia uma presa, mas um aliado, porque se lhe enroscava ao pescoço.
    “São os meus animais! – disse Zaratustra, e regozijou-se intimamente.
    O animal mais arrogante que o sol cobre e o animal mais astuto que o sol cobre saíram em exploração.
    Queriam descobrir se Zaratustra ainda vivia. Ainda viverei, deveras?
    Encontrei mais perigos entre os homens do que entre os animais; perigosas sendas segue Zaratustra. Guiem-me os meus animais.”
    Depois de dizer isto, Zaratustra recordou-se das palavras do santo do bosque, suspirou e falou assim ao seu coração:
    “Devo ser mais judicioso! Devo ser tão profundamente astuto como a minha serpente. Peço, porém, o impossível; rogo, portanto, a minha altivez que me acompanhe sempre a prudência!
    E se um dia a prudência me abandonar – ai! agrada-lhe tanto fugir! – possa sequer a minha altivez voar com a minha loucura!”
    Assim começou o caso de Zaratustra.

    Os Discursos de Zaratustra

    Das Três Transformações

    “Três transformações do espírito vos menciono: como o espírito se muda em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança.
    Há muitas coisas pesadas para o espírito, para o espírito forte e sólido, respeitável. A força deste espírito está bradando por coisas pesadas, e das mais pesadas.
    Há o quer que seja pesado? – pergunta o espírito sólido. E ajoelha-se como camelo e quer que o carreguem bem. Que há mais pesado, heróis – pergunta o espírito sólido – a fim de eu o deitar sobre mim, para que a minha forca se recreie?
    Não será rebaixarmo-nos para o nosso orgulho padecer? Deixar brilhar a nossa loucura para zombarmos da nossa sensatez?
    Ou será separarmo-nos da nossa causa quando ela celebra a sua vitória? Escalar altos montes para tentar o que nos tenta?
    Ou será sustentarmo-nos com bolotas e erva do conhecimento e padecer fome na alma por causa da verdade?
    Ou será estar enfermo e despedir a consoladores e travar amizade com surdos que nunca ouvem o que queremos?
    Ou será submerjirmo-nos em água suja quando é a água da verdade, e não afastarmos de nós as frias rãs e os quentes sapos?
    Ou será amar os que nos desprezam e estender a mão ao fantasma quando nos quer assustar?
    O espírito sólido sobrecarrega-se de todas estas coisas pesadíssimas; e à semelhança do camelo que corre carregado pelo deserto, assim ele corre pelo seu deserto.
    No deserto mais solitário, porém, se efetua a segunda transformação: o espírito torna-se leão; quer conquistar a liberdade e ser senhor no seu próprio deserto.
    Procura então o seu último senhor, quer ser seu inimigo e de seus dias; quer lutar pela vitória com o grande dragão.
    Qual é o grande dragão a que o espírito já não quer chamar Deus, nem senhor? “Tu deves”, assim se chama o grande dragão; mas o espírito do leão diz: “Eu quero”. O “tu deves” está postado no seu caminho, como animal escamoso de áureo fulgor; e em cada uma das suas escamas brilha em douradas letras: “Tu deves!”
    Valores milenários brilham nessas escamas, e o mais poderoso de todos os dragões fala assim:
    “Em mim brilha o valor de todas as coisas”.
    “Todos os valores foram já criados, e eu sou todos os valores criados. Para o futuro não deve existir o “eu quero!” Assim falou o dragão.
    Meus irmãos, que falta faz o leão no espírito? Não bastará a besta de carga que abdica e venera?
    Criar valores novos é coisa que o leão ainda não pode; mas criar uma liberdade para a nova criação, isso pode-o o poder do leão.
    Para criar a liberdade e um santo NÃO, mesmo perante o dever; para isso, meus irmãos, é preciso o leão.
    Conquistar o direito de criar novos valores é a mais terrível apropriação aos olhos de um espírito sólido e respeitoso. Para ele isto é uma verdadeira rapina e coisa própria de um animal rapace.
    Como o mais santo, amou em seu tempo o “tu deves” e agora tem que ver a ilusão e arbitrariedade até no mais santo, a fim de conquistar a liberdade à custa do seu amor. É preciso um leão para esse feito.
    Dizei-me, porém, irmãos: que poderá a criança fazer que não haja podido fazer o leão? Para que será preciso que o altivo leão se mude em criança?
    A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação.
    Sim; para o jogo da criação, meus irmãos, é preciso uma santa afirmação: o espírito quer agora a sua vontade, o que perdeu o mundo quer alcançar o seu mundo.
    Três transformações do espírito vos mencionei: como o espírito se transformava em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança”.
    Assim falava Zaratustra. E nesse tempo residia na cidade que se chama “Vaca Malhada”.

    Das Cátedras da Virtude

    Elogiaram a Zaratustra um sábio que falava doutamente do sono e da virtude; por isso se via cumulado de honrarias e recompensas, e todos os mancebos acorriam à sua cátedra. Zaratustra foi ter com ele, e, como todos os mancebos, sentou-se diante da sua cátedra. E o sábio falou assim:
    “Honrai o sono e respeitai-o! É isso o principal. E fugi de todos os que dormem mal e estão acordados de noite.
    O próprio ladrão se envergonha em presença do sono. Sempre vagueia silencioso durante a noite: mas o relento é insolente.
    Não é pouco saber dormir; para isso é preciso aprontar-se durante o dia.
    Dez vezes ao dia deves saber vencer-te a ti mesmo; isto cria uma fadiga considerável, e esta é a dormideira da alma.
    Dez vezes deves reconciliar-te contigo mesmo, porque é amargo, vencermo-nos, e o que não está reconciliado dorme mal.
    Dez verdades hás de encontrar durante o dia; se assim não for, ainda procurarás verdades durante a noite e a tua alma estará faminta.
    Dez vezes ao dia precisas rir e estar alegre, senão incomodar-te-á de noite o estômago, esse pai da aflição.
    Ainda que poucas pessoas o saibam, é preciso ter todas as virtudes para dormir bem.
    Levanto falsos testemunhos? Cometi adultério?
    Cobiço a serva do próximo? Tudo isto se combina mal com um bom sono.
    E se se tivessem as virtudes, seria preciso saber fazer coisa: adormecer a tempo todas as virtudes.
    É mister que estas lindas mulheres se não desavenham! E por tua causa, infeliz!
    Paz com Deus e com o próximo: assim o quer o bom sono. E também paz com o diabo do próximo, senão, atormentar-te-á de noite.
    Honra e obediência à autoridade, mesmo à autoridade que claudique! Assim o exige o bom sono!
    Acaso tem uma pessoa culpa do poder gostar de andar com pernas coxas?
    Aquele que conduz as suas ovelhas ao prado mais viçoso, para mim será melhor pastor: isto é conveniente ao bom sono.
    Não quero muitas honras nem grandes tesouros; isto exacerba a bílis. Dorme-se mal, porém, sem uma boa reputação e um pequeno tesouro.
    Prefiro pouca ou má companhia; mas é mister que venha e se vá embora no momento oportuno. É isto o que convém ao bom sono.
    Também me agradam muito os pobres de espírito: apressam o sono. São bem-aventurados, mormente quando se lhes dá sempre razão.
    Assim passam o dia os virtuosos. Quando chega a noite, livro-me bem de chamar o sono. O sono, que é o rei das virtudes, não quer ser chamado.
    Somente penso no que fiz e pensei durante o dia. Ruminando, interrogo-me pacientemente como uma vaca. Então, quais foram as tuas dez vitórias sobre ti mesmo?
    E quais foram as dez reconciliações, e as dez verdades, e os dez risos, com que se alegrou o meu coração?
    Maquinando nestas coisas e acalentado por quarenta pensamentos, o sono, que eu não chamei, logo me surpreende.
    O sono dá-me nos olhos, e sinto-os pesados. O sono aflora à minha boca, e a boca fica aberta.
    Sutilmente se introduz em mim o ladrão predileto e rouba-me os pensamentos. Estou de pé, feito um tronco; mas ainda há pouco de pé, logo me estendo”.
    Ouvindo falar o sábio, Zaratustra riu-se consigo mesmo.
    “Parece-me doido este sábio com os seus quarenta pensamentos, mas creio que compreende bem o sono.
    Bem-aventurado o que habite ao pé deste sábio! Um sono assim é contagioso, mesmo através de uma parede espessa.
    Na sua cátedra mesmo há um feitiço. E não era debalde que os mancebos estavam sentados ao pé do pregador da virtude.
    Diz a sua sabedoria: “Velar para dormir bem”. E, na verdade, se a vida faltasse senso e eu tivesse que eleger um contra-senso, esse contra-senso parecer-me-ia o mais digno de eleição.
    Agora compreendo o que se procurava primeiro que tudo em nossos dias, quando se procurava mestres de virtude. O que se procurava era um bom sono, e para isso virtudes coroadas de dormideiras.
    Para todos estes sábios catedráticos, tão ponderados, a sabedoria era dormir sem sonhar: não conheciam melhor sentido da vida.
    Hoje ainda há alguns como este pregador da virtude, e nem sempre tão honestos como ele; mas o seu tempo já passou.
    E ainda bem não estão em pé, já se estendem.
    Bem-aventurados tais dormentes porque não tardarão a dormir de todo”.
    Assim falava Zaratustra.

    Dos Crentes Em Além Mundos

    Um dia, Zaratustra elevou a sua ilusão mais além da vida dos homens, à maneira de todos os que crêem em além-mundos.
    Obra de um deus dolente e atormentado lhe pareceu então o mundo.
    “Sonho me parecia, e ficção de um deus: vapor colorido ante os olhos de um divino descontente.
    Bem e mal, alegria e desgosto, eu e tu, vapor colorido me parecia tudo ante os olhos criadores. O criador queria desviar de si mesmo o olhar... e criou o mundo.
    Para quem sofre é uma alegria esquecer o seu sofrimento. Alegria inebriante e esquecimento de si mesmo me pareceu um dia o mundo.
    Este mundo, o eternamente imperfeito, me pareceu um dia, imagem de uma eterna contradição, e uma alegria inebriante para o seu imperfeito criador.
    Da mesma maneira projetei eu também a minha ilusão mais para além da vida dos homens à semelhança de todos os crentes em além-mundos. Além dos homens, realmente?
    Ai, meus irmãos! Este deus que eu criei, era obra humana e humano delírio, como todos os deuses.
    Era homem, tão somente um fragmento de homem e de mim. Esse fantasma saía das minhas próprias cinzas e da minha própria chama, e nunca veio realmente do outro mundo.
    Que sucedeu, meus irmãos? Eu, que sofria, dominei-me; levei a minha própria cinza para a montanha; inventei para mim uma chama mais clara. E vede! O fantasma ausentou-se!
    Agora que estou curado, seria para mim um sofrimento e um tormento crer em semelhantes fantasmas. Assim falo eu aos que crêem em além-mundos.
    Sofrimentos e incompetências; eis o que criou todos os além-mundos, e esse breve desvario da felicidade que só conhece quem mais sofre.
    A fadiga, que de um salto quer atingir o extremo, uma fadiga pobre e ignorante, que não quer ao menos um maior querer; foi ela que criou todos os deuses e todos os além-mundos.
    Acreditai-me, meus irmãos! Foi o corpo que desesperou do corpo: tateou com os dedos do espírito extraviado as últimas paredes.
    Acreditai-me, meus irmãos! Foi o corpo que desesperou da terra: ouviu falar as entranhas do ser.
    Quis então que a sua cabeça transpassasse as últimas paredes, e não só a cabeça: até ele quis passar para o “outro mundo”.
    O “outro mundo”, porém, esse mundo desumanizado e inumano, que é um nada celeste, está oculto aos homens, e as entranhas do ser não falam ao homem, a não ser como homem.
    É deveras difícil demonstrar o Ser, e difícil é fazê-lo falar. Dizei-me, porém, irmãos: a mais estranha de todas as coisas não será a melhor demonstrada?
    E, este Eu que cria, que quer, e que dá a medida e o valor das coisas, este Eu, e a contradição e confusão do Eu falam com a maior lealdade do seu ser.
    E este ser lealíssimo, o Eu, fala do corpo, e quer o corpo, embora sonhe e divague e esvoace com as asas partidas.
    O Eu aprende a falar mais realmente de cada vez, e quanto mais aprende, mais palavras acha para honrar o corpo e terra.
    O meu Eu ensinou-me um novo orgulho que eu ensino aos homens: não ocultar a cabeça nas nuvens celestes, mas levá-la descoberta; sustentar erguida uma cabeça terrestre que creia no sentido da terra.
    Eu ensino aos homens uma nova vontade: querer o caminho que os homens têm seguido cegamente, e considerá-lo bom e fugir dele como os enfermos e os decrépitos.
    Enfermos e decrépitos foram os que menosprezaram o corpo e a terra, os que inventaram as coisas celestes e as gotas de sangue redentor; mas até esses doces e lúgubres venenos foram buscar no corpo e na terra!
    Queriam fugir da sua miséria, e as estrelas estavam demasiado longe para eles. Então suspiraram: “Oh! se houvessem caminhos celestes para alcançar outra vida e outra felicidade!” E inventaram os seus artifícios e as suas beberagens sangrentas.
    E julgaram-se arrebatados para longe do seu corpo e desta terra, os ingratos! A quem deviam, porém, o seu espasmo e o deleite do seu arroubamento? Ao seu corpo e a esta terra.
    Zaratustra é indulgente com os enfermos. Não o enfadam as suas formas de se consolarem, nem a sua ingratidão. Curem-se, dominem-se, criem um corpo superior!
    Zaratustra também se não enfada com o que sara quando este olha com carinho as suas ilusões, e vai à meia-noite rodear a tumba do seu Deus; mas as suas lágrimas continuam sendo para mim enfermidade e corpo enfermo.
    Houve sempre muitos enfermos entre os que sonham e suspiram por Deus; odeiam furiosamente o que procura o conhecimento e a mais nova das virtudes, que se chama lealdade.
    Olham sempre para trás, para tempos obscuros; nesse tempo, de certo, a ilusão e a fé eram outra coisa. O delírio da razão era coisa divina, e a dúvida, pecado.
    Conheço demasiado esses semelhantes a Deus; querem que se acredite neles e que a dúvida seja pecado. Também sei de sobra no que é que eles crêem mais.
    Não é, certamente, em além-mundos e em gotas de sangue redentor; eles também crêem sobretudo no corpo, e ao seu próprio que olham como a coisa em si.
    O seu corpo, porém, é coisa enfermiça e de boa vontade se livrarão dele. Por isso escutam os pregadores da morte e eles mesmos pregam os além-mundos.
    Preferi, meus irmãos, a voz do corpo curado; é uma voz mais leal e mais pura. O corpo são, o corpo cheio de ângulos retos, fala com mais lealdade e mais pureza; fala do sentido da terra”.
    Assim falava Zaratustra.

    Dos que Desprezam o Corpo

    Aos que desprezam o corpo quero dizer a minha opinião. O que devem fazer não é mudar de preceito, mas simplesmente despedirem-se do seu próprio corpo, e por conseguinte, ficarem mudos.
    “Eu sou corpo e alma” – assim fala a criança. – E porque sei não há de falar como as crianças?
    Mas o que está desperto e atento diz: – “Tudo é corpo, e nada mais; a alma é apenas nome de qualquer coisa do corpo”.
    O corpo é uma razão em ponto grande, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.
    Instrumento do teu corpo é também a tua razão pequena, a que chamas espírito: um instrumentozinho e um pequeno brinquedo da tua razão grande. Tu dizes “Eu” e orgulhas-te dessa palavra. Porém, maior – coisa que tu não queres crer – é o teu corpo e a tua razão grande. Ele não diz Eu, mas: procede como Eu. O que os sentidos apreciam, o que o espírito conhece, nunca em si tem seu fim; mas os sentidos e o espirito quereriam convencer-te de que são fim de tudo; tão soberbos são.
    Os sentidos e o espírito são instrumentos e joguetes; por detrás deles se encontra o nosso próprio ser. Ele esquadrinha com os olhos dos sentidos e escuta com os olhos do espirito.
    Sempre escuta e esquadrinha o próprio ser: combina, submete, conquista e destrói. Reina, e é também soberano do Eu.
    Por detrás dos teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, há um senhor mais poderoso, um guia desconhecido, chama-se “eu sou”. Habita no teu corpo; é o teu corpo.
    Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E quem sabe para que necessitará o teu corpo precisamente da tua melhor sabedoria?
    O próprio ser se ri do teu Eu e dos seus saltos arrogantes. Que significam para mim esses saltos e vôos do pensamento? – diz. – Um rodeio para o meu fim. Eu sou o guia do Eu e o inspirador de suas idéias.
    O nosso próprio ser diz ao Eu: “Experimenta dores!” E sofre e medita em não sofrer mais; e para isso deve pensar.
    O nosso próprio ser diz ao Eu: “Experimenta alegrias!” regozija-se então e pensa em continuar a regozijar-se freqüentemente; e para isso deve pensar. Quero dizer uma coisa aos que desprezam o corpo: desprezam aquilo a que devem a sua estima. Quem criou a estima e o menosprezo e o valor e a vontade? O próprio ser criador criou a sua estima e o seu menosprezo, criou a sua alegria e a sua dor. O corpo criador criou a si mesmo o espírito como emanação da sua vontade. Desprezadores do corpo: até na vossa loucura e no vosso desdém sereis o vosso próprio ser. Eu vos digo: o vosso próprio ser quer morrer e se afasta da vida. Não pode fazer o que mais desejaria: criar superando-se a si mesmo. É isto o que ele mais deseja; é esta a sua paixão toda.
    É, porém, tarde demais para isso: de maneira que até o vosso próprio ser quer desaparecer, desprezadores do corpo.
    O vosso próprio ser quer desaparecer: por isso desprezais o corpo! Porque não podeis criar já, superando-vos a vós mesmos.
    Por isso vos revoltais contra a vida e a terra. No olhar oblíquo do vosso menosprezo transparece uma inveja inconsciente.
    Eu não sigo o vosso caminho, desprezadores do corpo! Vós, para mim não sois pontes que se encaminhem para o Super-homem!”
    Assim falava Zaratustra.

    Das Alegrias e Paixões
    “Irmão, quando possuis uma virtude e essa virtude é tua, não a tens em comum com pessoa nenhuma.
    A falar verdade, tu queres chamá-la pelo seu nome e acariciá-la; queres puxar-lhe a orelha e divertir-te com ela.
    E já vês! Tens agora o seu nome em comum com o povo, e tornaste-te povo e rebanho com a tua virtude!
    Farias melhor dizendo: “Coisa inexprimível e sem nome é o que constitui o tormento e a doçura da minha alma, e o que é também a fome das minhas entranhas”. Seja a tua virtude demasiado alta para a familiaridade de denominações; e se necessitas falar dela não te envergonhes de balbuciar.
    Fala e balbucia assim: “Este é o meu bem, o que amo; só assim me agrada inteiramente; só assim é que quero bem!
    Não o quero como mandamento de um Deus, nem como uma lei e uma necessidade humana; não há de ser para mim um guia de terras superiores e paraísos. O que eu amo é uma virtude terrena, que se não relaciona com a sabedoria e o sentir comum.
    Este pássaro, porém, construiu o seu ninho em mim; por isso lhe quero e o estreito ao coração. Agora incuba em mim os seus dourados ovos”.
    É assim que deves balbuciar e elogiar a tua virtude.
    Dantes tinhas paixões e chamava-lhes males. Agora, porém, só tens as tuas virtudes: nasceram das tuas paixões.
    Puseste nessas paixões o teu objetivo mais elevado; então passaram a ser tuas virtudes e alegrias.
    Fostes da raça dos coléricos, ou dos voluptuosos ou dos fanáticos, ou dos vingativos, todas as tuas paixões acabaram por se mudar em virtudes, todos os teus demônios em anjos.
    Dantes tinhas no teu antro, cães selvagens, mas acabaram por se converter em pássaros e aves canoras.
    Com os teus venenos preparaste o teu bálsamo; ordenhaste a tua vaca de tribulação e agora bebes o saboroso leite dos seus úberes.
    E nenhum mal nasce em ti, a não ser aquele que brota da luta das tuas virtudes. Irmão, quando gozas de boa sorte tens uma virtude, e nada mais; assim passas mais ligeiro a ponte. É uma distinção ter muitas virtudes, mas é sorte bem dura; e não são poucos os que se têm ido matar ao deserto por estarem fartos de ser combatente e campo de batalha de virtudes.
    Irmão, a guerra e as batalhas são males? Pois são males necessários; a inveja, a desconfiança e a calúnia são necessárias entre as tuas virtudes.
    Repara como cada uma das virtudes deseja o mais alto que há: quer todo o teu espírito para seu arauto, quer a tua força toda na cólera, no ódio e no amor. Cada virtude é ciosa das outras virtudes, e os ciúmes são uma coisa terrível.
    Também há virtudes que podem morrer por ciúmes.
    O que anda em redor da chama dos ciúmes, acaba qual escorpião, por voltar contra si mesmo o aguilhão envenenado.
    Ai, meu irmão! Nunca viste uma virtude caluniar-se e aniquilar-se a si mesma? O homem precisa ser superado. Por isso necessitas amar as tuas virtudes, porque por elas morrerás”.
    Assim falava Zaratustra.

    Do Pálido Delinqüente

    “Vós, juizes e sacrificadores, não quereis matar enquanto a besta não haja inclinado a cabeça? Vede: o pálido delinqüente inclinou a cabeça; em seus olhos fala o supremo desprezo.
    “O meu Eu deve ser superado: o meu Eu é para mim o grande desprezo do homem”. Assim falam os olhos dele. O seu momento maior foi aquele em que a si mesmo se julgou. Não deixeis o sublime tornar ai cair na sua baixeza!
    Para aquele que tanto sofre por si, só há salvação na morte rápida. O vosso homicídio, oh! juizes! deve ser compaixão, e não vingança. E ao matar, tratai de justificar a própria vida.
    Não vos basta reconciliar-vos com aquele que matais. Seja a vossa tristeza amor ao Super-homem; assim justificais a vossa supervivência!
    Dizei “inimigo”, “malvado” não; dizei “enfermo” e não “infame”; dizei “insensato” e não “pecador”.
    E tu, vermelho juiz, se dissesses em voz alta o que fizeste já em pensamento, toda gente gritaria: Abaixo essa imundície e esse verme venenoso!...
    Uma coisa, porém, é o pensamento, outra a ação, outra a imagem da ação. A roda da causalidade não gira entre elas.
    Uma imagem fez empalidecer esse homem pálido. Ele estava à altura do seu ato quando o realizou, mas não suportou a sua imagem depois de o ter consumado.
    Sempre se viu só, como o autor de um ato. Eu chamo isso loucura; a exceção converteu-se para ele em regra.
    O golpe que deu fascina-lhe a pobre razão: a isso chamo eu a loucura depois do ato. Ouvi, Juizes! Ainda há outra loucura: a loucura antes do ato. Ah! não penetrastes profundamente nessa alma.
    O juiz vermelho fala assim: “Por que foi que este criminoso matou? Queria roubar”. Mas eu vos digo: a sua alma queria sangue e não o roubo; tinha sede do gozo da faca! A sua pobre razão, porém, não compreendia essa loucura e decidiu-o. “Que importa o sangue? – disse ela. – Nem ao menos desejas roubar ao mesmo tempo? Não te desejas vingar?”
    E atendeu a sua pobre razão, cuja linguagem pesava sobre ele como chumbo; então roubou ao assassinar. Não se queria envergonhar da sua loucura. E agora pesa sobre ele o chumbo do seu crime; mas a sua pobre razão está tão paralisada, tão torpe!...
    Se ao menos pudesse sacudir a cabeça, a sua carga cairia, mas, quem sacudirá esta cabeça?
    Quem é este homem? Um conjunto de enfermidades que, pelo espírito, abrem caminho para fora do mundo, onde querem apanhar a sua presa.
    Que é este homem? Um magote de serpentes ferozes que se não podem entender; por isso cada qual vai por seu lado procurar presa pelo mundo. Vede este pobre corpo! O que ele sofreu e o que desejou, a alma o interpretou a seu favor; interpretou-o como gozo e desejo sanguinário do prazer da faca. O que enferma agora, vê-se dominado pelo mal, que é mal agora; quer fazer sofrer com o que o faz sofrer; mas houve outros tempos e outros males e bens. Dantes era um mal a dúvida e a vontade própria. Então o enfermo torna-se herege e bruxa; como herege e bruxa padecia e fazia padecer.
    Mas isto não quer entrar nos vossos ouvidos; prejudica, dizeis, os vossos bons; mas que me importam a mim os vossos bons?
    Nos vossos bons há muitas coisas que me repugnam, e de certo não é o seu mal.
    Quereria que tivessem uma loucura que os levasse a sucumbir, como esse pálido criminoso.
    Quereria que a sua loucura se chamasse verdade, ou fidelidade, ou justiça; mas têm virtude para viver em mísera conformidade.
    Eu sou um anteparo na margem do rio; aquele que puder prender-me, que o faça. Saiba-se, porém, que não sou vossa muleta”.
    Assim falava Zaratustra.

    Ler e Escrever

    “De todo o escrito só me agrada aquilo que uma pessoa escreveu com o seu sangue. Escreve com sangue e aprenderás que o sangue é espírito.
    Não é fácil compreender sangue alheio: eu detesto todos os ociosos que lêem. O que conhece o leitor já nada faz pelo leitor. Um século de leitores, e o próprio espírito terá mau cheiro.
    Ter toda a gente o direito de aprender a ler é coisa que estropia, não só a letra mas o pensamento.
    Noutro tempo o espírito era Deus; depois fez-se homem; agora fez-se populaça. O que escreve em máximas e com sangue não quer ser lido, mas decorado. Nas montanhas, o caminho mais curto é o que medeia de cimo a cimo; mas para isso é preciso ter pernas altas. Os aforismos devem ser cumieiras, e aqueles a quem se fala devem ser homens altos e robustos.
    O ar leve e puro, o próximo perigo e o espírito cheio de uma alegre malícia, tudo isto se harmoniza bem.
    Eu quero ver duendes em torno de mim porque sou valoroso. O valor que afugenta os fantasmas cria os seus próprios duendes: o valor quer rir. Eu já não sinto em uníssono convosco; essa nuvem que eu vejo abaixo de mim, esse negrume e carregamento de que me rio, é precisamente a vossa nuvem tempestuosa. Vós olhais para cima quando aspirais a vos elevar. Eu, como estou alto, olho para baixo.
    Qual de vós pode estar alto e rir ao mesmo tempo?
    O que escala elevados montes ri-se de todas as tragédias da cena e da vida. Valorosos, despreocupados, zombeteiros, violentos, eis como nos quer a sabedoria. É mulher e só lutadores podem amar.
    Vós dizeis-me: “A vida é uma carga pesada”. Mas, para que é esse vosso orgulho pela manhã e essa vossa submissão, à tarde?
    A vida é uma carga pesada; mas não vos mostreis tão contristados. Todos somos jumentos carregados.
    Que parecença temos com o cálice de rosa que treme porque o oprime uma gota de orvalho?
    É verdade: amamos a vida não porque estejamos habituados à vida, mas ao amor. Há sempre o seu quê de loucura no amor; mas também há sempre o seu quê de razão na loucura.
    E eu, que estou bem com a vida, creio que para saber de felicidade não há como as borboletas e as bolhas de sabão, e o que se lhes assemelhe entre os homens.
    Ver revolutear essas almas aladas e loucas, encantadoras e buliçosas, é o que arranca a Zaratustra lágrimas e canções.
    Eu só poderia crer num Deus que soubesse dançar.
    E quando vi o meu demônio, pareceu-me sério, grave, profundo e solene: era o espírito do pesadelo. Por ele caem todas as coisas.
    Não é com cólera, mas com riso que se mata. Adiante! matemos o espírito do pesadelo! Eu aprendi a andar; por conseguinte corro. Eu aprendi a voar; por conseguinte não quero que me empurrem para mudar de sítio.
    Agora sou leve, agora vôo; agora vejo por baixo de mim mesmo, agora salta em mim um Deus”.
    Assim falava Zaratustra.

    Da Árvore da Montanha

    Os olhos de Zaratustra tinham visto um mancebo que evitava a sua presença. E, uma tarde, ao atravessar sozinho as montanhas que rodeiam a cidade denominada “Vaca Malhada”, encontrou esse mancebo sentado ao pé de uma árvore, dirigindo ao vale um olhar fatigado. Zaratustra agarrou a árvore a que o mancebo se encostava e disse: “Se eu quisesse sacudir esta árvore com as minhas mãos não poderia; mas o vento, que não vemos, açoita-a e dobra-a como lhe apraz. Também a nós outros, mãos invisíveis nos açoitam e dobram rudemente.”
    A tais palavras, o mancebo ergueu-se assustado, dizendo: “Ouço Zaratustra, e positivamente estava a pensar nele”
    “Por que te assustas? O que sucede à árvore, sucede ao homem. Quanto mais se quer erguer para as alturas e para a luz, mais vigorosamente enterra as suas raízes para baixo, para o tenebroso e profundo: para o mal.”
    “Sim; para o mal! – exclamou o manicebo – Como é possível teres descoberto a minha alma?”
    Zaratustra sorriu e disse: “Há almas que nunca se descobrirão, a não ser que se principie por inventá-las”.
    “Sim; para o mal! – exclamou outra vez o mancebo.
    Dizias a verdade, Zaratustra. Já não tenho confiança em mim desde que quero subir às alturas, e já nada tem confiança em mim. A que se deve isto? Eu transformo-me depressa demais: o meu hoje contradiz o meu ontem. Com freqüência salto degraus quando subo, coisa que os degraus me não perdoam. Quando chego em cima, sempre me encontro só. Ninguém me fala; o frio da soledade faz-me tiritar. Que é que quero, então, nas alturas?
    O meu desprezo e o meu desejo crescem a par; quanto mais me elevo mais desprezo o que se eleva?
    Como me envergonho da minha ascensão e das minha quedas! Como me rio de tanto anelar! Como odeio o que voa! Como me sinto cansado nas alturas!”
    O mancebo calou-se. Zaratustra olhou atento a árvore a cujo pé se encontravam e falou assim:
    “Esta árvore está solitária na montanha. Cresce muito sobranceira aos homens e aos animais.
    E se quisesse falar ninguém haveria que a pudesse compreender: tanto cresceu. Agora espera, e continua esperando. Que esperará, então? Habita perto demais das nuvens: acaso esperará o primeiro raio?”
    Quando Zaratustra acabava de dizer isto, o mancebo exclamou com gestos veementes: “É verdade, Zaratustra: dizes bem. Eu desejei a minha queda ao querer chegar às alturas, e tu eras o raio que esperava. Olha: que sou eu, desde que tu nos apareceste? A inveja aniquilou-me!” Assim falou o mancebo, e chorou amargamente. Zaratustra cingiu-lhe a cintura com o braço e levou-o consigo.
    Depois de andarem juntos durante algum tempo, Zaratustra começou a falar assim: “Tenho o coração desfibrado. Melhor do que as tuas palavras, dizem-me os teus olhos todo o perigo que corres.
    Ainda não és livre, ainda procuras a liberdade. As tuas buscas desvelaram-te e envaideceram-te demasiadamente.
    Queres escalar a altura livre; a tua alma está sedenta de estrelas; mas também os teus maus instintos têm sede de liberdade.
    Os teus cães selvagens querem ser livres; ladram de alegria no seu covil quando o teu espírito tende a abrir todas as prisões.
    Para mim, és ainda um preso que sonha com a liberdade. Ai! a alma de presos assim torna-se prudente, mas também astuta e má.
    O que libertou o seu espírito necessita ainda purificar-se. Ainda lhe restam muitos vestígios de prisão e de lodo: é preciso, todavia, que a sua vista se purifique.
    Sim; conheço o teu perigo; mas, por amor de mim te exorto a não afastares para longe de ti o teu amor e a tua esperança!
    Ainda te reconheces nobre, assim como nobre te reconhecem os outros, os que estão mal contigo e te olham com maus olhos. Fica sabendo que todos tropeçam com algum nobre no seu caminho.
    Também os bons tropeçam com algum nobre no seu caminho, e se lhe chamam bom é tão somente para o pôr de parte.
    O nobre quer criar alguma coisa nobre e uma nova virtude. O bom deseja o velho e que o velho se conserve.
    O perigo do nobre, porém, não é tornar-se bom, mas insolente, zombeteiro e destruidor. Ah! eu conheci nobres que perderam a sua mais elevada esperança. E depois caluniaram todas as elevadas esperanças.
    Agora têm vivido abertamente com minguadas aspirações, e apenas planearam um fim de um dia para outro.
    “O espírito é também voluptuosidade” – diziam. E então o seu espírito partiu as asas; arrastar-se-á agora de trás para diante, maculando tudo quanto consome. Noutro tempo pensavam fazer-se heróis; agora são folgazões. O herói é para ele aflição e espanto.
    Mas, por amor de mim e da minha esperança te digo: não expulses para longe de ti o herói que há na tua alma! Santifica a tua mais elevada esperança!”
    Assim falava Zaratustra.

    Dos Pregadores da Morte
    “Há pregadores da morte, e a terra está cheia de indivíduos a quem é preciso pregar que desapareçam da vida.
    A terra está cheia de supérfluos, e os que estão demais prejudicam a vida. Tirem-nos desta com o engodo da “eterna”!
    “Amarelos” se costuma chamar aos pregadores da morte, ou então “pretos”. Eu, porém, quero apresentá-los também sob outras cores.
    Terríveis são os que têm dentro de si a terra, e que só podem escolher entre as concupiscências e as mortificações.
    Nem sequer chegariam a ser homens esses seres terríveis.
    Preguem, pois, o abandono da vida, e vão-se eles também!
    Eis os tísicos da alma. Mal nasceram e já começaram a morrer, e sonham com as doutrinas do cansaço e da renúncia.
    Quereriam estar mortos, e nós devemos santificar-lhes a vontade. Livremo-nos de ressuscitar esses mortos e de lhes violar as sepulturas.
    Encontram um doente, um velho ou um cadáver, e depois dizem: “Reprove-se a vida!” Os reprovados, contudo, são eles unicamente, assim como os seus olhos que só vêem um aspecto da sua existência.
    Sumidos na densa melancolia e ávidos dos leves acidentes que matam, esperam cerrando os dentes.
    Ou então estendem a mão para doces e zombam das suas próprias criancices: estão encostados à vida como uma palha, e escarnecem de se apoiarem a uma palha.
    A sua sabedoria diz: “Louco é aquele que pertence à vida, mas, assim somos nós loucos! E esta é a maior loucura da vida!”
    “A vida não é mais do que sofrimento”, dizem outros, e não mentem. Tratai pois de abreviar a vossa. Fazei cessar a vida que é só sofrimento!
    Eis o ensinamento da vossa virtude: “Deves matar-te a ti mesmo! Deves desaparecer diante de ti mesmo!”
    “A luxúria é pecado – dizem alguns dos que pregam a morte. – Separemo-nos e não engendremos filhos!”
    “É doloroso dar à luz – dizem os outros. – Para que se há de continuar a dar à luz?” E também eles são pregadores da morte.
    “É preciso ser compassivo – dizem os terceiros – Recebei o que tenho. Recebei o que sou! Assim me prendo menos à vida”.
    Se fossem verdadeiramente compassivos procurariam desgostar da vida o próximo. Serem maus, seria a verdadeira bondade.
    Eles, porém, querem libertar-se da vida. Que lhes importa prender outros a ela mais estreitamente com as suas cadeias e as suas dádivas?
    E vós outros também, vós que levais uma vida de inquietação e de trabalho furioso, não estais cansadíssimos da vida? Não estais bastante sazonados para a pregação da morte?
    Vós todos que amais o trabalho furioso e tudo o que é rápido, novo, singular, suportai-vos mal a vós mesmos: a vossa atividade é fuga e desejo de vos esquecerdes de vós mesmos.
    Se tivésseis mais fé na vida, não vos entregaríeis tanto ao momento corrente; mas não tendes fundo suficiente para esperar nem tão pouco para a preguiça. Por toda parte ressoa a voz dos que pregam a morte, e a terra está cheia de seres a que é mister pregar a morte.
    Ou “a vida eterna” – que para mim é o mesmo – contanto que se vão depressa”. Assim falava Zaratustra.

    Da Guerra e dos Guerreiros

    “Não queremos que os nossos inimigos nos tratem com indulgência, nem tão pouco aqueles a quem amamos de coração. Deixai-me, portanto, dizer-vos a verdade!
    Irmãos na guerra! Amo-vos de todo o coração; eu sou e era vosso semelhante. Também sou vosso inimigo. Deixai-me, portanto, dizer-vos a verdade!
    Conheço o ódio e a inveja do vosso coração. Não sois bastante grandes para não conhecer o ódio e a inveja. Sede, pois, bastante grandes para não vos envergonhardes disso! E se não podeis ser os santos do conhecimento, sede ao menos os seus guerreiros. Eles são os companheiros e os precursores dessa entidade.
    Vejo muitos soldados; oxalá possa ver muitos guerreiros. Chama-se “uniforme” o seu traje; não seja, porém, uniforme o que esse traje oculta!
    Vós deveis ser daqueles cujos olhos procuram sempre um inimigo, o vosso inimigo. Em alguns de vós se descobre o ódio à primeira vista.
    Vós deveis procurar o vosso inimigo e fazer a vossa guerra, uma guerra por vossos pensamentos. E se o vosso pensamento sucumbe, a vossa lealdade, contudo, deve cantar vitória.
    Deveis amar a paz como um meio de novas guerras, e mais a curta paz do que a prolongada. Não vos aconselho o trabalho, mas a luta. Não vos aconselho a paz, mas a vitória. Seja o vosso trabalho uma luta! Seja vossa paz uma vitória!
    Não é possível estar calado e permanecer tranqüilo senão quando se têm flechas no arco; a não ser assim questiona-se. Seja a vossa paz uma vitória!
    Dizeis que a boa causa é a que santifica também a guerra? Eu vos digo: a boa guerra é a que santifica todas as coisas.
    A guerra e o valor têm feito mais coisas grandes do que o amor do próximo. Não foi a vossa piedade mas a vossa bravura que até hoje salvou os náufragos.
    Que é bom? – perguntais. –Ser valente. Deixai as raparigas dizerem: “Bom é o bonito e o meigo”.
    Chamam-vos gente sem coração; mas o vosso coração é sincero, e a mim agrada-me o pudor da vossa cordialidade. Envergonhai-vos do vosso fluxo, e os outros se envergonham do seu refluxo.
    Sois feios? Pois bem, meus irmãos; envolvei-vos no sublime, o manto da fealdade. Quando a vossa alma cresce, torna-se arrogante, e há maldade na vossa elevação. Conheço-vos.
    Na maldade, o arrogante encontra-se com o fraco, mas não se compreendem. Conheço-vos. Só deveis ter inimigos para os odiar, e não para os desprezar. Deveis sentir-vos orgulhosos do vosso inimigo; então os triunfos dele serão também triunfos vossos. A revolta é a nobreza do escravo. Seja a obediência a vossa nobreza. Seja a obediência o vosso próprio mandato!
    Para o verdadeiro homem de guerra soa mais agradavelmente “tu deves” do que “eu quero”. E vós deveis procurar ordenar tudo o que quiserdes.
    Seja o vosso amor à vida amor às mais elevadas esperanças, e que a vossa mais elevada esperança seja o mais alto pensamento da vida.
    E o vosso mais alto pensamento deveis ouvi-lo de mim, e é este: o homem deve ser superado.
    Vivei assim a vossa vida de obediência e de guerra. Que importa o andamento da vida! Que guerreiro quererá poupar-se?
    Eu não uso de branduras convosco, amo-vos de todo o coração, irmãos na guerra!” Assim falava Zaratustra.

    Do Novo Ídolo

    “Ainda em algumas partes há povos e rebanhos; mas entre nós, irmãos, entre nós há Estados.
    Estados? Que é isso? Vamos! Abri os ouvidos, porque vos vou falar da morte dos povos.
    Estado chama-se o mais frio dos monstros. Mente também friamente, e eis que mentira rasteira sai da sua boca: “Eu, o Estado, sou o Povo”.
    É uma mentira! Os que criaram os povos e suspenderam sobre eles uma fé e um amor, esses eram criadores: serviam a vida.
    Os que armam laços ao maior número e chamam a isso um Estado são destruidores; suspendem sobre si uma espada e mil apetites.
    Onde há ainda povo não se compreende o Estado que é detestado como uma transgressão aos costumes e às leis.
    Eu vos dou este sinal: cada povo fala uma língua do bem e do mal, que o vizinho não compreende. Inventou a sua língua para os seus costumes e as suas leis.
    Mas o Estado mente em todas as línguas do bem e do mal, e em tudo quanto diz mente, tudo quanto tem roubou-o.
    Tudo nele é falso; morde com dentes roubados. Até as suas entranhas são falsas. Uma confusão das línguas do bem e do mal: é este o sinal do Estado. Na Verdade, o que este sinal indica é a vontade da morte; está chamando os pregadores da morte.
    Vêm ao mundo homens demais, para os supérfluos inventou-se o Estado! Vede como ele atrai os supérfluos! Como os engole, como os mastiga e remastiga! “Na terra nada há maior do que eu; eu sou o dedo ordenador de Deus” – assim grita o monstro. E não são só os que têm orelhas compridas e vista curta que caem de joelhos! Ai! também em vossas almas grandes murmuram as suas sombrias mentiras! Aí eles advinham os corações ricos que gostam de se prodigalizar! Sim; adivinha-vos a vós também, vencedores do antigo Deus. Saístes rendido do combate, e agora a vossa fadiga ainda serve ao novo ídolo!
    Ele queria rodear-se de heróis e homens respeitáveis. A este frio monstro agrada-lhe acalentar-se ao sol da pura consciência. A vós outros quer ele dar tudo, se adorardes. Assim compra o brilho da vossa virtude e o altivo olhar dos vossos olhos. Convosco quer atrair os supérfluos! Sim; inventou com isso uma artimanha infernal, um corcel de morte, ajaezado com adorno brilhante das honras divinas. Inventou para o grande número uma morte que se preza de ser vida, uma servidão à medida do desejo de todos os pregadores da morte.
    O Estado é onde todos bebem veneno, os bons e os maus; onde todos se perdem a si mesmos, os bons e os maus; onde o lento suicídio de todos se chama “a vida”. Vede, pois, esses supérfluos! Roubam as obras dos inventores e os tesouros dos sábios; chamam a civilização ao seu latrocínio, e tudo para eles são doenças e contratempo. Vede, pois, esses supérfluos. Estão sempre doentes; expelem a bilis, e a isso chamam periódicos. Devoram-se e nem sequer se podem dirigir. Vede, pois, esses adquirem riquezas, e fazem-se mais pobres. Querem o poder, esses ineptos, e primeiro de tudo o palanquim do poder: muito dinheiro! Vede trepar esses ágeis macacos! Trepam uns sobre os outros e arrastam-se para o lodo e para o abismo.
    Todos querem abeirar-se do trono; é a sua loucura – como se a felicidade estivesse no trono! – Freqüentemente também o trono está no lodo.
    Para mim todos eles são doidos e macacos trepadores e buliçosos. O seu ídolo, esse frio monstro, cheira mal; todos eles, esses idólatras, cheiram mal.
    Meus irmãos, quereis por agora afogar-vos na exalação de suas bocas e de seus apetites? Antes disso, arrancai as janelas e saltai para o ar livre! Evitai o mau cheiro! Afastai-vos da idolatria dos supérfluos.
    Evitai o mau cheiro! Afastai-vos do fumo desses sacrifícios humanos!
    Ainda agora o mundo é livre para as almas grandes. Para os que vivem solitários ou aos pares ainda há muitos sítios vagos onde se aspira a fragrância dos mares silenciosos.
    Ainda têm franca uma vida livre as almas grandes. Na verdade, quem pouco possui tanto menos é possuído. Bendita seja a nobreza!
    Além onde acaba o Estado começa o homem que não é supérfluo; começa o canto dos que são necessários, a melodia única e insubstituível.
    Além, onde acaba o Estado... olhai, meus irmãos! Não vedes o arco-íris e a ponte do Super-homem?”
    Assim falava Zaratustra.

    Das Moscas da Praça Pública

    “Foge, meu amigo, para a tua soledade! Vejo-te aturdido pelo ruído dos grandes homens e crivado pelos ferrões dos pequenos.
    Dignamente sabem calar-se contigo os bosques e os penedos. Assemelha-te de novo à tua árvore querida, a árvore de forte ramagem que escuta silenciosa, pendida para o mar.
    Onde cessa a soledade principia a praça pública, onde principia a praça pública começa também o ruído dos grandes cômicos e o zumbido das moscas venenosas. No mundo as melhores coisas nada valem sem alguém que as represente; o povo chama a esses representantes grandes homens.
    O mundo compreende mal o que é grande, quer dizer, o que cria; mas tem um sentido para todos os representantes e cômicos das grandes coisas.
    O mundo gira em torno dos inventores de valores novos; gira invisivelmente; mas em torno do mundo giram o povo e a glória: assim “anda o mundo”.
    O cômico tem espírito, mas pouca consciência do espírito. Crê sempre naquilo pelo qual faz crer mais energicamente – crer em si mesmo.
    Amanhã tem uma fé nova, e depois de amanhã outra mais nova. Possui sentidos rápidos como o povo, e temperaturas variáveis.
    Derribar: chama a isto demonstrar. Enlouquecer: chama a isto convencer. E o sangue é para ele o melhor de todos os argumentos.
    Chama mentira e nada a uma verdade que só penetra em ouvidos apurados. Verdadeiramente só crê em deuses que façam muito ruído no mundo. A praça pública está cheia de truões ensurdecedores, e o povo vangloria-se dos seus grandes homens. São para eles os senhores do momento.
    O momento oprime-o e eles oprimem-te a ti, exigem-te um sim ou um não. Desgraçado! Queres colocar-te entre um pró e um contra?
    Não invejes esses espíritos opressores e absolutos ó! amante da verdade! Nunca
    a verdade pendeu do braço de um espírito absoluto.
    Torna ao teu asilo, longe dessa gente tumultuosa; só na praça pública assediam uma pessoa com o “sim ou não?”.
    As fontes profundas têm que esperar muito para saber o que caiu na sua profundidade. Tudo quanto é grande passa longe da praça pública e da glória. Longe da praça pública e da glória viveram sempre os inventores de valores novos.
    Foge, meu amigo, para a soledade; vejo-te aqui aguilhoado por moscas venenosas. Foge para onde sopre um vento rijo.
    Foge para a tua soledade. Viverás próximo demais dos pequenos mesquinhos. Foge da sua vingança invisível! Para ti não mais que vingança.
    Não levantes mais o braço contra eles!
    São inumeráveis, e o teu destino não é ser enxota-moscas!
    São inumeráveis esses pequeninos e mesquinhos; e altivos edifícios se têm visto destruídos por gotas de chuva e ervas ruins.
    Não és uma pedra, mas já te fenderam infinitas gotas. Infinitas gotas continuarão a fender-te e a quebrar-te.
    Vejo-te cansado das moscas venenosas, vejo-te arranhado e ensangüentado, e o teu orgulho nem uma só vez se quer encolerizar.
    Elas desejariam o teu sangue com a maior inocência; as suas almas anêmicas reclamam sangue e picam com a maior inocência.
    Mas tu, que és profundo, sentias profundamente até as pequenas feridas, e antes da cura já passeava outra vez pela tua mão o mesmo inseto venenoso.
    Pareces-me altivo demais para matar esse glutões; mas repara, não venha a ser destino teu suportar toda a sua venenosa injustiça!
    Também zumbem à tua roda com os seus louvores. Importunidades: eis os seus louvores. Querem estar perto da tua pele e do teu sangue.
    Adulam-te como um deus ou um diabo! choramingam diante de ti como de um deus ou de um diabo. Que importa?
    São aduladores e choramingas, nada mais.
    Também sucede fazerem-se amáveis contigo; mas foi sempre essa a astúcia dos covardes. É verdade; os covardes são astutos!
    Pensam muito em ti com a alma mesquinha. Suspeitam sempre de ti. Tudo o que dá muito que pensar se torna suspeito.
    Castigam-te pelas tuas virtudes todas.
    Só te perdoam verdadeiramente os teus erros.
    Como és benévolo e justo, dizes: “Não têm culpa da pequenez da sua existência”. Mas a sua alma acanhada pensa: “Toda a grande existência é culpada”.
    Mesmo que sejas benévolo com eles, ainda se consideram desprezados por ti e pagam o teu benefício com ações dissimuladas.
    O teu mudo orgulho contraria-os sempre, e alvorotam quando acertas em ser bastante modesto para ser vaidoso.
    O que reconhecemos num homem infamamos-lhe também nele. Livra-te, portanto, dos pequenos.
    Na tua presença sentem-se pequenos, e sua baixeza arde em invisível vingança contra ti.
    Não notaste como costumávamos emudecer quando te aproximava deles, e como as forças os abandonavam tal como a fumaça que se extingue?
    Sim, meu amigo; és a consciência roedora dos teus próximos, porque não são dignos de ti. Por isso te odeiam e quereriam sugar-te o sangue.
    Os teus próximos hão de ser sempre moscas venenosas. E o que é grande em ti deve precisamente torná-los mais venenosos e mais semelhantes às moscas. Foge, meu amigo, para a tua soledade, para além onde sopre vento rijo e forte. Não é destino teu ser enxota-moscas”.
    Assim falava Zaratustra.

    Da Castidade

    “Amo o bosque. É difícil viver nas cidades; nelas abundam fogosos demais. Não vale mais cair nas mãos de um assassino do que nos sonhos de uma mulher ardente?
    Se não, olhai para esses homens; os seus olhos o dizem; nada melhor conhecem na terra do que deitar-se com uma mulher.
    Têm lodo no fundo da alma; e coitados deles se o seu lodo possui inteligência!
    Se ao menos fosseis animais completos!
    Mas para ser animal é preciso inocência.
    Será isto aconselhar-vos a que mateis os vossos sentidos? Aconselho-vos a inocência dos sentidos.
    Será isto aconselhar-vos a castidade? Em alguns a castidade é uma virtude; mas em muitos é quase um vício.
    Estes serão continentes; mas a vil sensualidade babuja zelosa tudo o que fazem. Até às alturas da sua virtude e até ao seu espírito os segue esse animal com a sua discórdia.
    E com gentileza a vil sensualidade sabe mendigar um pedaço de espírito quando se lhe nega um pedaço de carne.
    A vós outros agradam as tragédias e tudo o que lacera o coração? Pois eu olho desconfiado a vossa sensualidade.
    Tendes olhos demasiado cruéis, e olhais, cheios de desejos, para os que sofrem. Não será simplesmente porque a vossa sensualidade se disfarçou e tomou o nome de compaixão?
    Também vos apresento esta parábola:
    Não poucos, que queriam expulsar os demônios, se meteram com os porcos. Se a castidade pesa a algum, é preciso afastá-lo dela, para que a castidade não chegue a ser o caminho do inferno, isto é, da lama e da fogueira da alma. Falei de coisas imundas? Para mim não é isso o pior.
    Não quando a verdade é imunda, mas quando é superficial, é que o investigador mergulha de má vontade nas suas águas.
    Verdadeiramente há os castos por essência; são de coração mais meigo, agrada-lhes mais rir, e riem mais que vós outros.
    Riem-se também da castidade e perguntam:
    “Que é a castidade?
    Não é uma loucura? Mas essa loucura não veio ter conosco, não fomos nós que a buscamos.
    Oferecemos a esse hóspede pousada e simpatia: agora habita em nós. Demore-se quanto queira!”
    Assim falava Zaratustra.


    Do Amigo

    “Um só me assedia sempre excessivamente (assim pensa o solitário). Um sempre acaba por fazer dois!”
    “Eu e Mim estão sempre em conversações incessantes. Como se poderia suportar isto se não houvesse um amigo?
    Para o solitário o amigo é sempre o terceiro; o terceiro é a válvula que impede a conservação dos outros dois de se abismarem nas profundidades.
    Ai! Existem demasiadas profundidades para todos os solitários. Por isso aspiram a um amigo e à sua altura.
    A nossa fé nos outros revela aquilo que desejaríamos crer em nós mesmos. O nosso desejo de um amigo é o nosso delator.
    E freqüentemente, como a amizade, apenas se quer saltar por cima da inveja. E freqüentemente atacamos e criamos inimigos para ocultar que nós mesmos somos atacáveis. “Sê ao menos meu inimigo!” – Assim, fala o verdadeiro respeito, o que se não atreve a solicitar a amizade.
    Se se quiser ter um amigo, é preciso também guerrear por ele; e para guerrear é mister poder ser inimigo.
    É preciso honrar no amigo o inimigo. Podes aproximar-te do teu amigo sem passar para o seu bando?
    No amigo deve ver-se o melhor inimigo. Deves ser a glória do teu amigo, entregares-te a ele tal qual és? Pois é por isso que te manda para o demônio!
    O que se não recata, escandaliza. “Deveis temer a mudez! Sim; se fosseis deuses, então poderíeis envergonhar-vos dos vossos vestidos”.
    Nunca te adornarás demais para o teu amigo, porque deves ser para ele uma seta e também um anelo para o Super-homem.
    Já viste dormir o teu amigo para saberes como és? Qual é, então, a cara do teu amigo? É a tua própria cara num espelho tosco e imperfeito.
    Já viste dormir o teu amigo? Não te assombrou o seu aspecto? Ó! meu amigo; o homem deve ser superado!
    O amigo deve ser mestre na adivinhação e no silêncio: não deves querer ver tudo. O teu sono deve revelar-te o que faz o teu amigo durante a vigília.
    Seja a tua compaixão uma adivinhação: é mister que, primeiro que tudo, saibas se o teu amigo quer compaixão.
    Talvez em ti lhe agradem os olhos altivos e a contemplação da eternidade. Oculte-se a compaixão com o amigo sob uma rude certeza.
    Serás tu para o teu amigo ar puro e soledade, pão e medicina? Há quem não possa desatar as suas próprias cadeias, e todavia seja salvador do amigo.
    És escravo? Então não podes ser amigo.
    És tirano? Então não podes ter amigos.
    Há demasiado tempo que se ocultavam na mulher um escravo e um tirano. Por isso a mulher ainda não é capaz de amizade; apenas conhece o amor. No amor da mulher há injustiça e cegueira para tudo quanto não ama. E mesmo o amor, reflexo da mulher, oculta sempre, a par da luz, a surpresa, o raio da noite. A mulher ainda não é capaz de amizade: as mulheres continuam sendo gatas e pássaros. Ou, melhor, vacas.
    A mulher ainda não é capaz de amizade. Mas dizei-me vós homens: qual de vós outros é, porventura, capaz de amizade?
    Ai, homens! que pobreza e avareza a da vossa alma! Quando vós outros dais a vossos amigos eu quero dar também aos meus inimigos sem me tornar mais pobre por isso. Haja camaradagem. Haja amizade.”
    Assim falava Zaratustra.

    Os Mil Objetos e o Único Objeto

    “Muitos países e muitos povos viu Zaratustra; assim descobriu o bem e o mal de muitos povos. Zaratustra não encontrou maior poder na terra do que o bem e o mal. Nenhum poderia viver sem avaliar; mas, para se conservar não deve avaliar como o seu vizinho.
    Muitas coisas que um povo chama boas, eram para outros vergonhosas e desprezíveis; foi o que vi. Muitas coisas, aqui qualificadas de más, além as enfeitavam com o manto de púrpura das honrarias.
    Nunca um vizinho compreendeu o outro; sempre a sua alma se assombrou da loucura e da maldade do vizinho.
    Sobre cada povo está suspensa uma tábua de bens. E vede: é a tábua dos triunfos dos seus esforços; é a voz da sua vontade de poder.
    É honroso o que lhe parece difícil; o que é indispensável e difícil chama-se bem, e o que livra de maiores misérias, o mais raro e difícil, santifica-se.
    O que lhe permite reinar, vencer e brilhar com temor e inveja do seu vizinho, é para ele o mais elevado, o principal, a medida e o sentido de todas as coisas.
    Verdadeiramente, se tu conheces a necessidade, o país, o céu e o vizinho de um povo, adivinhas também a lei dos seus triunfos e por que razão sobe às suas esperanças por esses graus.
    “Deves ser sempre o primeiro a avantajar-se aos outros; a tua alma zelosa não deve amar ninguém senão o amigo”. – Isto fez tremer a alma de um grego, e levou-o a seguir o caminho da grandeza.
    “Dizer a verdade e saber manejar bem o arco e as flechas”. – Isto parecia caro ao mesmo tempo que difícil ao povo donde vem o meu nome, o nome que é para mim caro ao mesmo tempo que difícil.
    “Honrar pai e mãe, e ter para eles submissão”. Essa tábua das vitórias sobre si elegeu outro povo, e com ela foi eterno e poderoso.
    “Render culto à fidelidade, e pela fidelidade dar sangue e honra ainda tratando-se de coisas más e perigosas”. Por esse ensinamento venceu-se a si mesmo outro povo, e a vencer-se assim chegou a encher-se de grandes esperanças.
    A verdade é que os homens se deram todo o seu bem e todo o seu mal. A verdade é que o não tomaram, que o não encontraram, que lhes não caiu com uma voz do céu.
    O homem é que pôs valores nas coisas a fim de se conservar; foi ele que deu um sentido às coisas, um sentido humano. Por isso se chama “homem” isto é, o que aprecia. Avaliar é criar. Ouvi, criadores! Avaliar é o tesouro e a jóia de todas as coisas avaliadas. Pela avaliação se dá o valor; sem a avaliação, a noz da existência seria oca. Ouvi-o, criadores!
    A mudança dos valores é mudança de quem cria.
    Sempre o que há de criar destrói.
    Os criadores, num princípio foram povos, e só mais tarde indivíduos. Na verdade, os indivíduos é a mais recente das criações.
    Povos suspenderam noutro tempo sobre si uma tábua do bem. O amor, que quer dominar, e o amor que quer obedecer, criaram juntos essas tábuas.
    O prazer do rebanho é mais antigo que o prazer do Eu. E enquanto a boa consciência se chama rebanho, só a má diz: Eu.
    Na verdade, o Eu astuto, o Eu egoísta, que procura o seu bem no bem de muitos, este não é a origem do rebanho, mas a sua destruição.
    Sempre foram ardentes os que criaram o bem e o mal. O fogo do amor e o fogo da cólera ardem sob o nome de todas as virtudes.
    Muitos países e muitos povos viu Zaratustra. Não encontrou poder maior na terra que a obra dos ardentes; “bem e mal” é o seu nome.
    Na verdade, o poder desses elogios e destas censuras é semelhante a um monstro. Dizei-me, meus irmãos: Quem o derrubará? Dizei: quem lançará uma cadeia sobre as mil cervizes dessa besta?
    Até ao presente têm havido mil objetos, porque têm havido mil povos. Só falta a cadeia das mil cervizes: falta o único objeto. A humanidade não tem objeto. Mas dizei-me, irmãos: se falta objeto à humanidade, não é porque ela mesma ainda não existe?”
    Assim falava Zaratustra.

    Do Amor ao Próximo

    “Vós outros andais muito solícitos em redor do próximo, e manifestai-o com belas palavras. Mas eu vos digo: o vosso amor ao próximo é vosso meu amor a vós mesmos. Fugis de vós em busca do próximo, e quereis converter isso numa virtude; mas eu compreendo o vosso “desinteresse”.
    O Tu é mais velho do que Eu; o Tu acha-se santificado, mas o Eu ainda não. Por isso o homem anda diligente atrás do próximo.
    Acaso vos aconselho o amor ao próximo? Antes vos aconselho a fuga do “próximo” e o amor ao remoto!
    Mais elevado que o amor ao próximo é o amor ao longínquo, ao que está por vir, mais alto ainda que o amor ao homem coloco o amor às coisas e aos fantasmas. Esse fantasma que corre diante de vós, meus irmãos, é mais belo que vós. Por que lhe não dais a vossa carne e os vossos ossos? Mas tende-lhes medo e fugis à procura do vosso próximo.
    Não vos suportais a vós mesmos e não vos quereis bastante; desejaríeis seduzir o próximo por vosso amor e dourar-vos com a sua ilusão.
    Quisera que todos esses próximos e seus vizinhos se vos tornassem insuportáveis; assim teríeis que criar para vós mesmos o vosso amigo e o seu coração fervoroso. Chamais uma testemunha quando quereis falar bem de vós, e logo que a haveis induzido a pensar bem da vossa pessoa, vós mesmos pensais bem da vossa pessoa. Não só mente o que fala contra a sua consciência, mas sobretudo o que fala com a sua inconsciência. E assim falais de vós no trato social, enganando o vizinho. Fala o louco: “O trato com os homens exaspera o caráter, principalmente quando o não temos”.
    Um vai após o próximo, porque se procura; o outro porque se quisera esquecer. A vossa malquerença com respeito a vós mesmos converte a vossa soledade num cativeiro.
    Os mais afastados são os que pagam o nosso amor ao próximo, e quando vós juntais cinco, deve morrer um sexto.
    Também me não agradam as vossas festas; encontrei nelas demasiados cômicos e os mesmos espectadores se conduzem freqüentemente como cômicos.
    Não falo do próximo; falo só do amigo. Seja o amigo para vós a festa da terra e um pressentimento do Super-homem.
    Falo-vos do amigo e do seu coração exuberante. Mas é preciso saber ser uma esponja quando se quer ser amado por corações exuberantes.
    Falo-vos do amigo que leva em si um mundo disponível, um invólucro do bem – do amigo criador que tem sempre um mundo disponível para dar.
    E como se desenvolveu o mundo para ele, assim se envolve de novo: tal é o advento do bem pelo mal, do desígnio pelo acaso.
    Sejam o porvir e o mais remoto a causa do vosso hoje; no vosso amigo deveis amar o Super-homem, como razão de ser.
    Meus irmãos, eu não vos aconselho o amor ao próximo; aconselho-vos o amor ao mais afastado”.
    Assim falava Zaratustra.

    Do Caminho do Criador

    “Queres, meu irmão, insular-te? Queres procurar o caminho que te guia a ti mesmo? Espera ainda um momento e ouve-me.
    “O que procura, facilmente se perde a si mesmo.
    Todo o insulamento é um erro”. Assim fala o rebanho. E tu pertenceste ao rebanho durante muito tempo.
    Em ti também ainda há de ressoar a voz do rebanho. E tu pertenceste ao rebanho durante muito tempo.
    Em ti também ainda há de ressoar a voz do rebanho. E quando disseres: “Já não tenho uma consciência comum convosco”, isso será uma queixa e uma dor.
    Olha: essa mesma dor é filha da consciência comum e a última centelha dessa consciência ainda brilha na tua aflição.
    Queres, porém, seguir o caminho da tua aflição, que é o caminho para ti mesmo? Demonstra-me o teu direito e a tua força para isso!
    Acaso és uma força nova e um novo direito?
    Um primeiro movimento? Uma roda que gira sobre si mesma? Podes obrigar as estrelas a girarem em torno de ti?
    Ai! Existe tanta ansiedade pelas alturas!
    Há tantas convulsões de ambição! Demonstra-me que não pertences ao número dos cobiçosos nem dos ambiciosos!
    Ai! Existem tantos pensamentos grandes que apenas fazem o mesmo que um fole. Incham e esvaziam.
    Chamas-te livre? Quero que me digas o teu pensamento fundamental, e não que te livraste de um jugo.
    Serás tu alguém que tenha o direito de se livrar de um jugo? Há quem perca o seu último valor ao libertar-se da sua sujeição.
    Livre de quê? Que importa isso a Zaratustra? O teu olhar, porém, deve anunciar-se claramente: livre, para quê?
    Podes proporcionar a ti mesmo teu bem e o teu mal, e suspender a tua vontade por cima de ti como uma lei? Podes ser o teu próprio juiz e vingador da tua lei?
    Terrível é estar a sós com o juiz e o vingador da própria lei, como estrela lançada ao espaço vazio no meio do sopro gelado da soledade.
    Ainda hoje te atormenta a multidão; ainda conservas o teu valor e as tuas esperanças todas.
    Um dia, contudo, te fatigará a soledade, se abaterá o teu orgulho e cerrarás os dentes. Um dia clamarás: “Estou só!”
    Chegará um dia em que já não vejas a tua altura, e em que a tua baixeza esteja demasiado perto de ti. A tua própria sublimidade te amedrontará como um fantasma. Um dia gritarás: “Tudo é falso!”
    Há sentimentos que querem matar o solitário. Não o conseguem? Pois eles que morram! Mas, serás tu capaz de ser assassino?
    Meu irmão, já conheces a palavra “desprezo”? E o tormento da justiça de ser justo para com os que te menosprezam?
    Obrigas muitos a mudarem de opinião a teu respeito; por isso te consideram. Abeiraste-te deles e, contudo, passaste adiante; é coisa que te não perdoam.
    Elevaste-te acima deles; mas quanto mais alto sobes, tanto mais pequeno te vêm os olhos da inveja. E ninguém é tão odiado como o que voa.
    “Como quereríeis ser justo para comigo! – assim é que deves falar. – Eu elejo para mim a vossa injustiça, como lote que me está destinado”.
    Injustiça e baixeza é o que eles arrojam ao solitário; mas, meu irmão, se queres ser uma estrela, nem por isso os hás de iluminar menos.
    E livra-te dos bons e dos justos! Agrada-lhes crucificar os que invejam a sua própria virtude: odeiam o solitário.
    E livra-te ainda assim da santa simplicidade! A seus olhos não é santo o que é simples, e apraz-lhe brincar com fogo... das fogueiras.
    E livra-te também dos impulsos do teu amor! O solitário estende depressa demais a mão a quem encontra!
    Há homens a quem não deves dar a mão, mas tão somente a pata, e além disso quero que a tua pata tenha garras.
    O pior inimigo, todavia, que podes encontrar, és tu mesmo; lança-te a ti próprio nas cavernas e nos bosques.
    Solitário, tu segues o caminho que te conduz a ti mesmo! E o teu caminho passa por diante de ti e dos teus sete demônios.
    Serás herege para ti mesmo, serás feiticeiro, adivinho, doido, incrédulo, ímpio e malvado. É mister que queiras consumir-te na tua própria chama. Como quererias renovar-te sem primeiro te reduzires a cinzas?
    Solitário, tu segues o caminho do criador: queres tirar um deus dos teus sete demônios! Solitário, tu segues o caminho do amante: amas-te a ti mesmo, e por isso te desprezas, como só desprezam os amantes.
    O amante quer criar porque despreza! Que saberia do amor aquele que não devesse menosprezar justamente o que amava?
    Vai-te para o isolamento, meu irmão, com o teu amor e com a tua criação, e tarde será que a justiça te siga claudicando.
    Vai-te para o isolamento com as minhas lágrimas, meu irmão. Eu amo o que quer criar qualquer coisa superior a si mesmo e dessa arte sucumbe”.
    Assim falava Zaratustra.

    A Velha e a Nova

    “Por que deslizas tão furtivamente durante o crepúsculo, Zaratustra? E que ocultas com tanta precaução debaixo da tua capa?
    É algum tesouro que te deram? É um menino que te nasceu? Seguirás tu também agora o caminho dos ladrões amigo do mal?”
    “– Claro, meu irmão! – respondeu Zaratustra. – Levo aqui um tesouro: uma pequena verdade.
    É, porém, rebelde como uma criança, e se lhe não tapasse a boca gritaria desaforadamente. Seguia eu hoje solitário o meu caminho, à hora em que o sol se escondia, quando encontrei uma velha que falou assim à minha alma:
    “Zaratustra tem falado muito até mesmo conosco, mulheres, mas nunca nos falou da mulher”.
    Eu respondi: “Não é preciso falar da mulher senão aos homens”.
    “Fala-me a mim também da mulher – disse ela. – Sou bastante velha para esquecer logo tudo quanto me digas”. Cedi ao desejo da velha, e disse-lhe assim: “Na mulher tudo é um enigma e tudo tem uma só solução: a prenhez.
    O homem é para a mulher um meio; o fim é sempre o filho. Que é, porém, a mulher para o homem?
    O verdadeiro homem quer duas coisas: o perigo e o divertimento. Por isso quer a mulher, que é o brinquedo mais perigoso.
    O homem deve ser educado para a guerra e a mulher para prazer do guerreiro. Tudo o mais é loucura.
    O guerreiro não gosta de frutos doces demais. Por isso a mulher lhe agrada: a mulher mais doce tem sempre o seu quê de amargo.
    A mulher compreende melhor do que o homem as crianças: mas o homem é mais infantil que a mulher.
    Em todo o verdadeiro homem se oculta uma criança: uma criança que quer brincar. Eia, mulheres! descobri no homem a criança!
    Seja a mulher um brinquedo puro e fino como o diamante, abrilhantado pelas virtudes de um mundo que ainda não existe.
    Cintile no vosso amor o fulgor de uma estrela! A vossa esperança que diga: “Nasça de mim, do Super-homem!”
    Haja valentia no vosso amor! Com o vosso amor deveis afrontar o que vos inspire medo.
    Cifre-se a vossa honra no vosso amor! Geralmente a mulher pouco entende de honra. Seja, porém, honra vossa amar sempre mais do que fordes amadas e, nunca serdes a segunda.
    Tema o homem a mulher, quando a mulher odeia: porque, no fundo, o homem é simplesmente mau; mas a mulher é perversa.
    A que odeia mais a mulher? O ferro falava assim ao imã: “Odeio-te mais do que tudo porque atrais sem ser forte bastante para sujeitar”.
    A felicidade do homem é: eu quero; a felicidade da mulher é: ele quer. “Vamos! Já nada falta no mundo!” – assim pensa a mulher quando obedece de todo o coração.
    E é preciso que a mulher obedeça e que encontre uma profundidade para a sua superfície. A alma da mulher é superfície: móvel e tumultuosa película de águas superficiais. A alma do homem, porém, é profunda, a sua corrente brame em grutas subterrâneas; a mulher pressente a sua força mas não a compreende”.
    Então a velha respondeu-lhe: “Zaratustra disse muitas coisas bonitas, mormente para as que são novas.
    Coisa singular! Zaratustra conhece pouco as mulheres, e, contudo, tem razão no que diz delas! Será porque nada é impossível na mulher?
    E agora, como recompensa, aceita uma pequena verdade. Sou suficientemente velha para te dizer.
    Sufoca-a, tapa-lhe a boca, porque do contrário grita alto demais”.
    “Venha a tua verdade, mulher!” – disse eu, e a velha falou assim:
    “Acompanhas com as mulheres? Olha, não te esqueça o látego”.
    Assim falava Zaratustra.

    A Picada da Víbora

    Um dia, estava Zaratustra a dormitar sob uma figueira, porque fazia calor, e tinha tapado o rosto com o braço. Nisto chegou uma víbora, mordeu-lhe o pescoço, e ele soltou um grito de dor. Afastando o braço do rosto, olhou a serpente; ela reconheceu os olhos de Zaratustra, contorceu-se vagarosamente e quis se retirar. “Não – disse Zaratustra: – espera, ainda não te agradeci! Despertaste-me a tempo, pois o meu caminho ainda é longo”.
    – “O teu caminho é curto – disse tristemente a víbora: – o meu veneno mata”. Zaratustra pôs-se a rir. “Quando foi que o veneno de uma serpente matou um dragão? – disse – reabsorve o teu veneno! Não és rica demais para me fazeres presente dele”. Então a víbora tornou a enlaçar-lhe o pescoço e lambeu-lhe a ferida.
    Quando um dia Zaratustra contou isto aos seus discípulos, eles perguntaram-lhe: “E qual é a moral do teu conto?” Zaratustra respondeu:
    “Os bons e os justos chamam-me o destruidor da moral: o meu conto é imoral.
    Se tendes, porém, um inimigo, não lhe devolvais bem por mal porque se sentiria humilhado; demonstrai-lhe, pelo contrário, que vos fez um bem.
    E a ter que humilhar preferi encolerizar-vos. E quando se vos amaldiçoe, não me agrada que vós abençoeis. Amaldiçoai também.
    E se vos fizeram uma grande injustiça, fazei vós imediatamente cinco injustiças pequenas. Horroriza ver o que por si só sofre o peso da injustiça.
    Já sabeis isto? Injustiça repartida é semi-direito. E aquele que pode trazer a injustiça deve levá-la.
    Uma pequena vingança é mais humana do que nenhuma. E se o castigo não é somente um direito e uma honra para o transgressor, eu não quero o vosso castigo. É mais nobre condenarmos do que teimar, mormente quando temos razão. Somente é preciso ser rico bastante para isso.
    Não me agrada a vossa fria injustiça: nos olhos dos vossos juizes transparece sempre o olhar do verdugo e seu gelado cutelo.
    Dizei-me: onde se encontra a justiça que é amor com olhos perspicazes? Inventai-me, pois, o amor que suporta, não só todos os castigos, mas também todas as faltas.
    Inventai-me a justiça que absolve todos, exceto aquele que julga! Quereis ouvir mais? No que quer ser verdadeiramente justo, a mentira muda-se em filantropia.
    Mas, como poderia eu ser verdadeiramente justo? Como poderia dar a cada um o seu?
    Basta-me isto: eu dou a cada um o meu.
    Enfim, irmãos livrai-vos de ser injustos com os solitários. Como poderia um solitário esquecer? Como poderia devolver?
    Um solitário é como um poço profundo. É fácil lançar nele uma pedra; mas se a pedra vai ao fundo quem se atreverá a tirá-la?
    Livrai-vos de ofender o solitário; mas se o ofendestes então, matai-o também!” Assim falava Zaratustra.

    Do Filho do Matrimônio

    Tenho uma pergunta para ti só, meu irmão. Arrojo-a como uma sonda à tua alma, a fim de lhe conhecer a profundidade.
    És moço e desejas filho e matrimônio. Eu, porém, pergunto. Serás tu homem que tenha o direito de desejar um filho?
    Serás tu vitorioso, o vencedor de ti mesmo, o soberano dos sentidos, o dono das tuas virtudes?
    É isso o que eu te pergunto.
    Ou será que falam do teu desejo a besta e a necessidade física, ou o afastamento, ou a discórdia contigo mesmo?
    Eu quero que a tua vitória e a tua liberdade suspirem por um filho. Deves erigir monumento vivente à tua vitória e à tua libertação.
    Deves construir qualquer coisa que te seja superior.
    Primeiro que tudo, porém, é preciso que te hajas construído a ti mesmo, retangular de corpo e alma.
    Não deves só reproduzir-te, mas exceder-te! sirva-te para isso o jardim do matrimônio! Deves criar um corpo superior, um primeiro movimento, uma roda que gire sobre si; deves criar um criador.
    Matrimônio: chamo assim à vontade de dois criarem um que seja mais do que aqueles que o criaram. O matrimônio é o respeito recíproco: respeito recíproco dos que coincidem em tal vontade.
    Seja este o sentido e a verdade do teu matrimônio; mas isso a que os que estão demais, os supérfluos, chamam matrimônio, isso como se há de chamar? Ai! Que pobreza de alma entre dois! Que imundície de alma entre dois! Que mísera conformidade entre dois!
    A tudo isso chamam matrimônio, e dizem que contraem estas uniões no céu! Pois bem! Eu não quero esse céu dos supérfluos. Não; eu não quero essas bestas presas com redes divinas!
    Fique-se também por lá bem longe de mim esse Deus que vem coxeando abençoar aquilo que não uniu!
    Não vos riais de semelhantes matrimônios!
    Que filho não teria razão para chorar por causa de seus pais?
    Certo homem pareceu-me digno e sensato para o sentido da terra, mas quando vi a mulher dele, a terra pareceu-me moradia de insensatos.
    Sim; queria que a terra se convulsionasse quando se acasalam um santo e uma pata. Tal outro partiu como herói em busca de verdades e não trouxe por colheita senão uma mentira engalanada. Chamam a isso o seu matrimônio.
    Este era frio nas suas relações e escolhia ponderadamente; mas de uma só vez transtornou para sempre a sua sociedade. A isso chamam o seu matrimônio.
    Aquele procurava uma servente com as virtudes de um anjo; mas daí a pouco tornou-se servente de uma mulher, e agora precisava ele tornar-se anjo.
    Vejo agora todos os compradores muito senhores de si e com olhos astutos; mas até o mais astuto compra a sua mulher às cegas.
    A muitas loucuras pequenas chamais amor. E o vosso matrimônio termina muitas loucuras pequenas para as tornar uma loucura grande.
    O vosso amor à mulher e o amor da mulher pelo homem, ó! seja compaixão para deuses dolentes e ocultos! Duas bestas, porém, quase sempre se adivinham. O vosso melhor amor, contudo, ainda não é mais do que uma imagem extasiada e um ardor doloroso. É um facho que vos deve iluminar para caminhos superiores. Um dia deverá o vosso amor elevar-se acima de vós mesmos! Aprendei, pois, primeiro a amar! Por isso vos foi preciso beber o amargo cálice do vosso amor. Existe amargura no cálice do melhor amor; assim vos faz desejar o Super-homem; assim tendes sede do criador.
    Sede do criador, seta e desejo do Super-homem; diz-me, meu irmão, é essa a tua vontade do matrimônio?
    Santa é para mim tal vontade, santo tal matrimônio”.
    Assim falava Zaratustra.

    Da Morte Livre

    “Muitos morreram tarde demais, e alguns demasiado cedo. A doutrina que diz: “Morre a tempo!” ainda parece singular.
    Morre a tempo: eis o que ensina Zaratustra.
    Claro que aquele que nunca viveu a tempo, como há de morrer a tempo? O melhor é não nascer.
    Eis o que aconselho aos supérfluos.
    Até os supérfluos, contudo, se fazem importantes com a sua morte, e até a noz mais oca quer ser partida.
    Todos concedem importância à morte; mas a morte ainda não é uma festa. Os homens ainda não sabem como se consagram às mais belas festas.
    Eu vos predico a morte necessária, a morte que, para os vivos, vem a ser um aguilhão e uma promessa.
    O que cumpre morre da sua morte, vitorioso, rodeado dos que esperam e prometem. Assim seria preciso aprender a morrer, e não deveria haver festa sem tal moribundo santificar os juramentos dos vivos.
    Morrer assim é o melhor, e morrer na luta é prodigalizar uma grande alma ainda maior.
    O combatente e o vitorioso, porém, odeiam igualmente a vossa morte espaventosa, que se vem arrastando como um ladrão, e que, todavia, se aproxima como soberana.
    Faço-vos o elogio da minha morte, da morte livre, que vem porque eu quero. E quando hei de querer? O que tem um fim e um herdeiro, quer a morte a tempo para o fim e para o herdeiro.
    E por respeito ao fim e ao herdeiro, já não suspenderá coroas murchas no santuário. Na verdade, não me quero parecer com os cordeiros: estiram os seus fios e eles andam sempre atrás.
    Há também quem se faça velho demais para as suas verdades e as suas vitórias; uma boca desdentada já não tem direito a todas as verdades.
    E o que queira desfrutar glória deve despedir-se a tempo das honras e exercer a difícil arte de se retirar oportunamente.
    É preciso fugir a deixar-se comer no próprio momento em que vos começam a tomar gosto. Os que querem ser amados muito tempo sabem isso.
    Há também maçãs ácidas, cujo destino é esperar até o último dia do outono. E põem-se amarelas e enrugadas, no próprio momento em que amadurecem. Nuns envelhece primeiro o coração, noutros a inteligência. E alguns são velhos na sua virtude; mas quando uma pessoa se faz moça muito tarde, conserva-se moça muito tempo.
    Há quem fale na sua vida: um verme venenoso lhes rói o coração. Tratem ao menos de acertar na sua morte.
    Há os que nunca estão doces: apodrecem já no verão. É a covardia que os sustenta no ramo.
    Há demasiados que ficam e permanecem fixos num ramo excessivo tempo. Venha uma tempestade, que sacuda da árvore toda essa podridão bichosa! Venham pregadores da morte rápida! Seriam as tempestades e as sacudidelas oportunas da árvore da vida. Eu, porém, só ouço pregar a morte lenta e a paciência com tudo o que é terrestre. Ai! Pregais a paciência com o que é terrestre? O terrestre é o que tem demasiada paciência convosco, blasfemos!
    Em verdade, morreu demasiado cedo aquele hebreu a quem honram os pregadores da morte lenta, e para muitos foi uma fatalidade ele morrer cedo demais. Esse Jesus hebreu só conhecia ainda as lágrimas e a tristeza do hebreu, juntamente com o ódio dos bons e dos justos; por isso o acometeu o desejo da morte. Por que não ficou ele no desterto, longe dos bons e dos justos? Talvez houvesse aprendido a viver e a amar a terra e também o riso!
    Crede-me, meus irmãos! Morreu cedo demais! retratar-se-ia da sua doutrina se tivesse vivido até minha idade! Era bastante nobre para se retratar!
    Não estava, porém, ainda maduro. O amor do jovem carece da maduracão, e assim também odeia os homens e a terra. Tem ainda presas e trôpegas a alma e as asas do pensamento.
    No homem, contudo, há mais de criança do que no jovem, e menos tristeza: compreende melhor a morte e a vida.
    Livre para a morte e livre na morte; divino negador, quando já não é tempo de afirmar: assim compreende a vida e a morte.
    Não seja a vossa morte uma blasfêmia contra os homens e contra a terra, meus amigos; eis o que exijo da doçura da vossa alma.
    Vosso espírito e vossa virtude devem inflamar até a vossa agonia, como o arrebol do poente inflama a terra; senão a vossa morte será malograda.
    Assim quero morrer eu para que, por mim, ameis mais a terra, meus amigos: e eu quero tornar-me terra, para encontrar o meu repouso naquela que me gerou. Na verdade, Zaratustra tinha um objetivo; lançou a péla. Agora, meus amigos, sois vós os herdeiros do meu objetivo; a vós envio a dourada péla.
    Prefiro a tudo, meus amigos, ver-nos lançar a péla dourada. E por isso me demoro ainda um pouquinho na terra. Perdoai-me!”
    Assim falava Zaratustra.

    Da Virtude Dadivosa

    I

    Quando Zaratustra se despediu da cidade que o seu coração amava, a qual tem por nome a “Vaca Malhada”, muitos dos que se diziam seus discípulos o acompanharam. Assim chegaram a uma encruzilhada. Então lhes disse Zaratustra que queria ficar só porque era amigo das caminhadas solitárias. Ao despedirem-se dele, os discípulos ofereceram-lhe como prenda um bastão, cujo castão representava uma serpente enroscada em torno do sol. Zaratustra aceitou-o alegremente, e apoiou-se nele. Depois falou assim aos discípulos:
    “Dizei-me: como alcançou o ouro o mais alto valor? E porque é raro e inútil, de brilho cintilante e brando: dá-se sempre.
    Só como símbolo da mais alta virtude o ouro alcançou o mais alto valor. É como o ouro, reluzente, o olhar daquele que dá. O brilho do ouro firma a paz entre a lua e o sol. A mais alta virtude é rara e inútil: é resplandecente e de um brilho brando: uma virtude dadivosa é a mais alta virtude.
    Em verdade vos adivinho, meus discípulos: vós aspirais como eu à virtude dadivosa. Que podereis ter de comum com os gatos e com os lobos?
    A vossa ambição é querer converter-vos, vós mesmos, em oferendas e presentes.
    Por isso desejais acumular todas as riquezas em vossas almas.
    A vossa alma anela insaciavelmente tesouros e jóias, porque é insaciável a vontade de dar da vossa virtude.
    Obrigais todas as crises a aproximarem-se de vós e a penetrar em vós outros, para tornarem a emanar da vossa fonte como os dons do vosso amor.
    Em verdade, é preciso que tal amor dadivoso se faça saqueador de todos os valores; mas eu chamo são e sagrado esse egoísmo.
    Há outro egoísmo, um egoísmo demasiado, pobre e famélico, que quer roubar sempre: o egoísmo dos doentes, o egoísmo enfermo.
    Com olhos de ladrão olha tudo o que reluz, com a aridez da fome mede o que tem abundantemente que comer, e sempre se arrasta à roda da mesa do que dá.
    A doença é uma invisível degeneração, eis o que tal apetite demonstra; a avidez de roubo desse egoísmo apregoa um corpo valetudinário.
    Dizei-me, meus irmãos: qual é a coisa que nos parece má, a pior de todas? Não é a degeneração? E pensamos sempre na degeneração quando falta a alma que dá.
    O nosso caminho é para cima: da espécie à espécie superior; mas o sentido que degenera, o sentido que diz: “Tudo para mim”, assombra-nos.
    O nosso sentido voa para cima, assim o símbolo do nosso corpo é símbolo de uma elevação. Os símbolos dessas elevações são os nomes das virtudes.
    Assim atravessa o corpo a história, lutando e elevando-se. E o espírito que é para o corpo? É o arauto das suas lutas e vitórias, o seu companheiro e o seu eco.
    Todos os nomes do bem e do mal são símbolos; não falam, limitam-se a fazer sinais. Louco é o que lhes quer pedir o conhecimento.
    Meus irmãos, estai atentos às ocasiões em que o vosso espírito quer falar em símbolos: assistis então à origem da vossa virtude.
    Então é quando o vosso corpo se elevou e ressuscitou; então arrebata o espírito com os seus transportes para que se faça criador e apreciador e amante, benfeitor de todas as coisas.
    Quando o nosso coração se agita, amplo e cheio, como o grande rio, bênção e perigo dos ribeirinhos, então assistis à origem da vossa virtude.
    Quando vos elevais acima do louvor e da censura, e quando a vossa vontade, como vontade de um homem que ama e quer mandar em todas as coisas, então assistis à origem da vossa virtude.
    Quando desprezais o que é agradável, a cama fofa, e quando nunca vos credes bastante longe da moleza para repousar, então assistis à origem da vossa virtude.
    Verdadeiramente é um novo bem e mal! Verdadeiramente é um novo murmúrio profundo e a voz de um manancial novo!
    Essa nova virtude é poder; um pensamento reinante e em torno desse pensamento uma alma sagaz: um sol dourado, e em torno dele a serpente do conhecimento”.

    II

    Aqui Zaratustra calou-se um bocado e olhou os discípulos com amor. Em seguida prosseguiu assim. A voz havia-se-lhe transformado:
    “Meus irmãos, permanecei fiéis à terra com todo o poder da vossa virtude. Sirvam ao sentido da terra o vosso amor dadivoso e o vosso conhecimento. Eu vo-lo rogo, e a isso vos conjuro.
    Não deixeis a vossa virtude fugir das coisas terrestres e adejar contra paredes eternas. Ai! Tem havido sempre tanta virtude extraviada!
    Restituí, como eu, à terra a virtude extraviada. Sim; restituí-a ao corpo e à vida, para que dê à terra o seu sentido, um sentido humano.
    A inteligência e a virtude têm-se extraviado e enganado de mil maneiras diferentes. Ainda agora residem no nosso corpo essa loucura e esse engano: tornaram-se corpo e vontade.
    A inteligência e a virtude ensaiaram-se e extraviaram-se de mil maneiras diferentes. Sim; o homem era um ensaio. Ai! quantas ignorâncias e erros se incorporam em nós.
    Não só a razão dos milenários, mas também a sua loucura aparece em nós. É perigoso ser herdeiro.
    Lutamos ainda passo a passo com o gigante azar e na humanidade inteira reinava até aqui a falta de sentido.
    Sirvam a vossa inteligência e a vossa virtude no sentido da terra, meus irmãos, e o valor de todas as coisas será renovado por vós. Para isso deveis ser criadores! O corpo purifica-se pelo saber, eleva-se com o esforço inteligente: todos os instintos do que pensa e conhece se santificam; a alma do que se eleva alvoroça-se. Médico, ajuda-te a ti mesmo; assim, ajudas também o teu doente. Seja a melhor assistência do doente ver com os seus próprios olhos o que se cura a si mesmo. Há mil sendas que nunca foram calcadas, mil fontes de saúde e mil terras ocultas na vida. Ainda se não descobriram nem esgotaram o homem nem a terra dos homens. Vigiai e escutai, solitários! Sopros de adejos secretos chegam do futuro, e a ouvidos apurados chega uma fausta mensagem.
    Solitários de hoje, vós, os afastados, sereis um povo algum dia. Vós que vos haveis entrescolhido a vós mesmos, formareis um dia um povo eleito do qual nascerá o Super-homem.
    Em terra, a terra far-se-á um dia um lugar de cura. Já a envolve um odor novo, um eflúvio de saúde e uma nova esperança”.

    III

    Ditas estas palavras, Zaratustra emudeceu, como quem ainda não disse a última palavra. Sopesou demoradamente o bastão, como que perplexo. Por fim falou assim, e a voz havia-se-lhe transformado:
    “Agora, meus discípulos, vou-me embora sozinho! Ide-vos, vós outros, sozinhos também! Assim o quero.
    Com toda a sinceridade vos dou este conselho: Afastai-vos de mim e precavei-vos contra Zaratustra! Melhor ainda: envergonhai-vos dele! Talvez vos haja enganado! O homem que reflexiona não só deve amar os seus inimigos, mas também odiar os seus amigos.
    Mal corresponde ao mestre aquele que nunca passa de discípulo. E por que não quereis arrancar a minha coroa?
    Venerais-me! Mas, que sucederia se uma vez caísse a vossa veneração? Cuidado, não vos esmague uma estátua!
    Dizeis que creis em Zaratustra? Vós sois crentes em mim; mas, que importam todos os crentes?!
    Vós ainda vos haveis procurado; encontrastes-me então. Assim fazem todos os crentes: por isso a fé é tão pouca coisa.
    Agora vos mando que me percais e vos encontreis a vós mesmos; e só quando todos me houverdes renegado tornarei para vós.
    Em verdade, meus irmãos, então buscareis com outros olhos as minhas ovelhas desgarradas; eu vos amarei então com outro amor.
    E um dia devereis ser meus amigos e filhos de uma só esperança; então quero estar a vosso lado, pela terceira vez, para festejar convosco o grande meio-dia.
    E o grande meio-dia será quando o homem estiver a meio do trajeto, entre a besta e o Super-homem, o célere, como sua esperança suprema, o seu caminho para o ocaso: porque será o caminho para uma nova manhã.
    Então o que desaparece se abençoará a si mesmo, a fim de passar para o outro lado, e o sol do seu conhecimento estará no seu meio-dia.
    “Todos os deuses morreram; agora viva o Super-homem!” Seja esta, chegado o grande meio-dia, a vossa última vontade!”
    Assim falava Zaratustra.
    posted by iSygrun Woelundr @ 7:30 PM   0 comments
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